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Número de Ondas

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (2)


O Cavalo Louco

Uma menina polaca ganhou, aos oito anos, a prenda de aniversário mais desejada do último milénio: uma boneca vestida de verde, com pilhas dentro, capaz de dizer papá e mamã em inglês. Quem lhe ofereceu a preciosa coisa foram precisamente o papá e a mamã da menina polaca.
A menina polaca veio a ser a esbelta rapariga que, aos dezasseis anos de idade, venceu o prémio nacional da canção juvenil, cuja final gloriosa decorreu em Varsóvia.
Onze meses mais tarde, na exacta véspera da morte do papá, a jovem estreava-se, com razoável sucesso, no teatro ligeiro de Lodz. Durante o funeral do senhor Boniek, a moça reviu o quarto da infância e chorou por longos minutos, abraçada à boneca antiga (que perdera, entretanto, a voz, o braço direito e o cabelo.)
Com vinte e sete anos, Margo Boniek era considerada a mulher mais sexy do principal corpo de baile do “Crazy Horse”. Desnuda, nem assim a minha atenção se cravou nas longas pernas que revolviam o campo da visão espectadora: concentrei-me nos seus olhos. Como eram os seus olhos?
Disse-lhe, à mesa de um “bistro” sebento de Paris velho, no intervalo de uma água com gás (sua) e de um café (meu):
- Os teus olhos, sabes, nunca estão parados. Acho que saltitam.
Ela riu e eu, desconsolado, desconfiei que alguém, antes de mim, lhe dissera já tal.
Já em Portugal, dois anos e meio depois, li no “France Soir” que a amada bailarina supra-dita se suicidara, lançando-se ao Sena, por volta da hora do almoço. No espelho luxuoso de um camarim do “Crazy Horse”, deixara escrito (com o tradicional bâton) o motivo da decisão tomada: “Estou farta de estar nua!”
A mamã da menina Margo só conheceu o triste evento dois meses depois de mim. Não tivera mais filhos. Vejo-a sentar-se lentamente sobre a cama antiga da filha, murmurando “Meu Deus” ou “Merda” ou “Porquê?”, em polaco amargo e rouco. Vejo-a suspirar, pesada, feia, olhando para lado nenhum e antecipando a própria morte. E vejo-a ainda acariciando a boneca de há dezanove anos, já sem voz, sem olhos, sem braços, sem o vestido verde.
Hesito, em matéria de metáfora: sou eu mesmo (sem Margo), a boneca nas mãos da velha mãe, ou a própria velhice órfã da sua criação mais bonita?

A Polónia estava, nessa tarde de Setembro, completamente nua.

Coimbra, 17 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 2.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A foto de Lodz foi colhida (com a devida vénia) em www.tripadvisor.com.br.]

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