Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Ilha do Tesouro: Stevenson e Eu


Um dos dias mais felizes da minha vida foi aquele em que, pela primeira vez, percebi o fenómeno da leitura: consoantes e vogais reuniam-se, interagiam, produziam sons e sentidos. O papá papa a papa. A casa é bonita. Eu sou um menino.
Aos seis anos, ler e escrever são poderes verdadeiramente mágicos. A minha primeira vítima foi o meu irmão mais velho, que se chama António, ou Tó. Escrevi na lousa, à primeira zanga: “Tó cocó.”
Ora, a escrita, como cedo percebi, tem consequências: o Tó deu-me duas palmadas e, como já andava na 3.ª classe, insultou-me de maneira mais sofisticada: “Quim pudim!”
Depois, Dona Lurdes, a vizinha do primeiro andar, que era professora, ofereceu à minha família, pelo Natal, dois livros: O Mundo dos Meninos Verdes, para mim; e um, mais extenso, A Ilha do Tesouro, para o meu irmão.
O Tó pouco ligou à obra do Stevenson. Preferia bicicletas, motorizadas, golos de cabeça, automóveis. Eu cansei-me do meu e, por duas semanas ou três, dediquei-me à fruição (desconfiada) desta ilha muito extensa com tesouro no título.
Ao princípio, estranhava (e lamentava) o facto de haver poucas imagens para tantas palavras. Mas, pouco a pouco, fui percebendo que também naquele texto impresso havia muitas imagens, e que essas imagens eram ainda mais mágicas e numerosas que as óbvias, as ostensivas, as habituais. Eram imagens que o meu cérebro e o meu coração fabricavam, em resposta a estímulos da narrativa. Eu, portanto, dialogando com o senhor Robert Louis Stevenson.
O livro tinha, como nos filmes de cowboys, maus e bons. Mas fui percebendo que mesmo os bons tinham defeitos, e que mesmo os maus tinham virtudes. A condição humana revelou-se-me sortida, variada, surpreendente, rica.
A hora de jantar custava-me. E tinha de interromper uma fuga, um segredo sussurrado por um papagaio, uma corrida em busca do tesouro, uma ameaça de perna de pau, um plano com rum e ameaças. Talvez o meu pai me perguntasse a razão do meu mutismo distraído. Talvez a minha mãe estivesse ainda ralhando comigo por não ter ido à mercearia buscar o sal (ou a farinha, ou os ovos, ou a fruta), e talvez ninguém acreditasse na minha versão verdadeira: não tinha ouvido tal ordem. Juro, Mãe. A verdade é que, logo a seguir à refeição, eu haveria de retornar ao meu quarto e retomar a vida de meia dúzia de piratas que, buscando ouro, iam página a página enriquecendo o meu quotidiano coimbrinha.
Quando o meu pai, bem bebido, aí pelas onze e meia da noite, contemplava a biblioteca do meu quarto e se surpreendia com a quantidade dos livros existentes, eu encolhia os ombros, com falsa modéstia: “São para aí cem. E então? Acha muito?” A minha mãe, amuada com o hálito avinhado do marido, virava as costas, aparentemente indiferente ao assunto. Mas, de manhã, eu bem a ouvia confidenciar à D. Lurdes, a vizinha professora: “O meu Quim passa a vida a ler. Talvez vá para médico.”
Casei muito cedo, aos vinte e um anos. Custou-me muito dizer adeus à minha casa, aos meus pais, ao meu irmão mais novo (que se chama Nelo). O Nelo teve pena que eu me fosse embora – e eu, num gesto grandioso e súbito, carregado de simbolismo, antes de abandonar a minha infância, ofereci-lhe a colecção dos Cinco, da Enid Blyton.
Ele nunca leu nenhum desses livros. Nem um. Mas teve a grandeza, anos mais tarde, por alturas dos seu próprio casamento, de me devolver os 21 volumes preciosos. Disse-me, com um abraço enorme, de irmão enorme, de braços enormes: “São para a tua filha. Ela gosta de ler.”
A minha filha sempre gostou de ler. Aos oitos anos, enquanto esperávamos por minha mulher, que dava aulas longe, ela e eu líamos num Café qualquer de uma terra qualquer, às vezes com um pratinho de arroz doce à nossa frente. Cada um com seu livro, juntos. Às seis, ela dizia: “Vamos buscar a mãe?” E íamos, cheios de novas histórias para trocarmos, em viagem, residentes no mundo do amor e dos livros (e do amor pelos livros).
Depois, há este facto de eu gostar tanto de histórias que até as invento. Aqui há tempos, uma colega em crise conjugal enviou um texto ao namorado para explicar o que sentia. Disse-mo ela. O texto foi escrito por mim e a minha colega dizia que era como se o texto tivesse sido escrito por ela, a pensar no seu (dela) amor.
Durante o ano de 2007, morreu-me muita gente importante. E anda pela minha vida, sinto-o bem, a doença do envelhecimento, da doença e do fim. Mas há livros.
Em verdade vos digo: o livro é um tesouro. Uma ilha de sonho num mar nem sempre amigo. (Um mar, ai de nós, que tantas vezes nos inunda os dias de amargura e desesperança.)
O livro é o sítio onde nos reunimos. Onde somos, como deuses ou gatos, felizes e completos. Nós, quero dizer: os que ainda não desistiram de ter sonhos e não têm vergonha de os nomear.
Stevenson, pá, ainda cá estou!

Joaquim Jorge Carvalho
Ribeira de Pena, Fevereiro de 2010.
[Texto publicado no “Ecos de Basto” em 2008.]

2 comentários:

Unknown disse...

e uma garrafa de rum... passa de mão em mão yo oh oh...

agarremos os violinos... não paremos de tocar... não pares nunca de escrever! Um abraço do Zé Carlos

Esperamos por ti na feira medieval!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Amigo,

obrigado por aqui vires. Conto contigo para mais "mergulhos". Faz de conta que este mar é teu!

Abraço.

JJC