Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (8)


A Unidade

I
Margo Boniek foi, durante anos, esposa mais ou menos pública de Louis Dietz, bem sucedido empresário do “Crazy Horse”. Havia desse homem, à volta da mulher, uma adoração absoluta e possessiva. Chamava-lhe “rosa do leste”. E houvera, da parte de Margo, uma inicial ingratidão pelo amor oferecido, que contudo rapidamente substituiria pelo desconforto e pelo medo.
Após uma semana de suores repetidos, de ardentes juras e ofertas caras, sobreveio na jovem polaca o desejo de passear, de ver teatro, de falar francês nas ruas parisienses. O empresário assustou-se: pelas esquinas do bairro, da cidade inteira, do país, via a baba predadora de milhares (milhões) de machos. Temia a eventual perda da rosa.
Por alguns meses, o quotidiano de Margo cingiu-se aos ensaios e aos espectáculos nocturnos (palco um: coreografia de canções; palco dois: strip-tease). A tal seguia-se o regresso liminar a casa, o sexo – furioso ou metódico – de Louis, e o sono opaco.
Até que o empresário se cansou do amor, mas não da posse. Um imenso “segurança”, que apenas comunicava através de agressões ou esgares, conduzia a mulher ao apartamento e por aí permanecia, fumando, até à chegada do patrão (ou, em vez dele, da notícia de que não viria nessa noite).
Esta vigilância apenas se atenuaria ano e meio depois, após o nascimento de Mimette Dietz, menina loira como uma madrugada de Varsóvia.

II
Quando eu cheguei à vida de Margo Boniek, nesse mês de Outubro, era tão difícil falar-lhe como celebrar missa no palco número dois. E então: naquele pic-nic de burguesas, oh Cesário amado, houve uma coisa simplesmente bela. Foi quando Margo, subitamente indisposta, saiu do rebanho profissional que tirava fotografias no Bois de Boulogne, para cartazes, e foi a certo Café próximo colher um copo de água (que bebeu, sôfrega, como uma papoula aflita). Os seus olhos snobs sorriram da minha admiração – e a minha admiração era pelo vestido rubro (de papopula), os braços finos, os olhos de ave e de estrelas. Meu amor.
Ergui-me numa inspiração. Juntei-me ao seu rubor, ofereci-lhe uma cadeira vizinha. Falávamos – os dois –um francês hesitante, é verdade; mas dos olhos de ambos chisparam, no silêncio intermédio às palavras, os poemas mais bonitos daquele século. Fomos felizes durante uns vinte minutos, que é a duração média da felicidade humana na terra, por cada cem anos.
Até chegar Louis Dietz, rude e educado (simultaneamente) como um empresário gaulês pode ser.
- Margo, alors?
Era uma manhã de Outono e, na Polónia, a essa hora, havia uma procissão em honra de Nossa Senhora de Lodz. Silêncio, pois. Silêncio e silêncio. Eu detive-me nos olhos do dono de Margo: verdes. Belos e frios como uma sintaxe imperadora.
Soergui-me à despedida de Margo. E tive pena de não lhe haver dito o meu nome.
Àquele Café voltei todos os seguintes dias (excepto às terças-feiras, porque fechava), sempre à hora celebrada em que te vira pela primeira vez. E dos amantes pacientes é o reino da Luz: vieste, doze dias depois, vaga e morrente, quando eu pagava o habitual chá de estar à espera.
- Margo, olá. Lembra-se de mim?
E tu, tímida ave da estratosfera, sorriste meninamente e disseste:
- O português. Lembro-me do seu cheiro.
Eis pois – oh deuses domésticos de todos os lugares – como é útil exagerarmos, em nós, o uso de bálsamos para depois da barba. E de como é profunda a memória dos perfumes, no secreto arquivo dos afectos humanos.
Dizias-me, tantas vezes, na esquina combinada das Tulleries, no banco mais esconso dos Elísios, nos táxis apressados entre o trabalho e o almoço:
- O teu cheiro. Nas cartas que escreves, na tua voz ao telefone, na minha lembrança nocturna, acho que há sempre o teu cheiro. E é decerto por isso que as saudades me doem tanto…
Margo Boniek, bonequinha verde que iluminou a minha vida: por ti, os melhores poemas; por ti, todos os filmes, todas as músicas, todas as árvores, todas as histórias de homens e civilizações; por ti, uma nova fábula de mim.

III
«Era uma vez um cidadão triste, longe do seu país, anónimo professor de Literatura Comparada, que (por amor) poupava na alimentação e na roupa para frequentar as melhores mesas do “Crazy Horse”. E que (igualmente por amor) soube aprender a dificílima arte da canalização e da instalação de sistemas eléctricos: assim ele entrava em tua casa, de fato-macaco ouvrier, iludindo a bruta vigilância de Louis ou dos primatas contratados; assim ele te soltava o robe e te oferecia a unidade que, amantes, eram. À saída, deixava-te ainda as instruções para novas avarias em torneiras, esgotos, tomadas. O estratagema duraria pouco tempo ou uma ternidade, conforme fossem os olhos de ler esta história. Mas é preciso dizer que não havia, então, o tempo mortal dos humanos no calendário sábio de Margo e daquele professor-operário.»

IV
No primeiro dia em que fizemos amor, tu tinhas na mão direita o anel que eu trouxera de Portugal. E eu era o fruto e o sol estrangeiros que procuravas. Em França, nada (nada!) existia senão a lua (ou sol) brilhando sobre os nossos corpos – mais a música perfeita de um americano negro, adivinhador da Alegria maiúscula dos nossos corações. Tinhas a mania de perguntar:
- Escreves porquê?
E eu:
- Para dar ordem à minha vida.
Quem olhasse, muito de fora da música que havia em nós ou do vinil rouco de Louisiana, não perceberia talvez que aquela confusa cama era a sagrada pátria do cosmos. E que de rosa a rosa a ave vai a distância livre do amor verdadeiro, o único que vale a pena.

Coimbra, já 22 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 8.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem que ilustra o texto é uma pintura de Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) - “Entrada” (1917).]

2 comentários:

Unknown disse...

Olá Quim Jorge!
Saúdo-te por partilhares connosco a tua escrita. E, sobretudo, agradeço-te.
Beijinho
Maria José

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado, Amiga!
Volta sempre. Este Mar também é teu!
Beijinho.
JJC