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Número de Ondas

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Daniel Abrunheiro


1.
Aí pelos finais de 90 do século XX, quiseram que eu dissesse, na Rádio Universidade de Coimbra, quais eram os melhores escritores vivos do nosso tempo. Não perdi a ocasião para um clichê intemporal e verdadeiro: os melhores escritores estão todos, por definição, vivos, seja qual for o século de onde os vejamos. Depois, falei em Herberto Helder, Ruy Belo, Saramago, Sophia, talvez Mário de Carvalho. E acrescentei um nome marginal ao conhecimento comum: Daniel Abrunheiro. Tão bom ou melhor – defendi – como qualquer um dos consagrados que antes referira.

2.
Não me enganei, como nestes últimos quinze anos pude confirmar pela produção literária deste autor. Poucos conseguiram, como ele, convocar-me o espanto e a admiração. O religioso enlevo de que fala Pessoa comentando, sob a semi-máscara de Bernardo Soares, a prosa de Vieira – eis uma imagem aproximada para a estética reacção que a escrita do Daniel fatalmente (me) suscita.
É verdade que o escritor é meu Amigo, circunstância que – concedo – pode sempre contaminar de subjectividade afectiva o rigor da análise e da avaliação. Mas eu sou leitor desde que me conheço; modéstias à parte, li (leio) milhares de autores, estudo e lecciono a matéria literária, investigo e discuto regularmente o fenómeno, escrevo. Ouso, pois, dizer-vos que sei do que falo.

3.
Temos cumplicidades biográficas. O Daniel andou, como eu, pela Escola Básica e Secundária da Pedrulha e cursou, como eu, Letras, em Coimbra.
Depois, foi professor, estudante de jornalismo no CENJOR, monitor de Língua Portuguesa, professor de Comunicação, músico, barman, trabalhador da construção civil, formador. Mas foi, antes e acima de tudo quanto se enuncia, escritor. Sempre.
Escreveu (e escreve) crónica, conto, romance, teatro, poesia. No que ele é melhor, acho eu, é no território dos versos, o que aliás explica por que, inevitavelmente, nas histórias que cria ou nas opiniões que produz, jamais deixamos de encontrar o omniburilado discurso poético.
Em “Vida e Obra de Fernando Pessoa”, ficamos a saber quanto Gaspar Simões admirava o autor de “Mensagem”. À semelhança de Régio (entre outros), Gaspar Simões reconhecia em Pessoa um valor extraordinário e um papel – digamos – seminal e revolucionário na história da literatura portuguesa. Igualmente ficamos a saber que João Gaspar Simões faz este juízo, não “a posteriori” (como é mais comum e confortável), mas no reduto compreensivo da própria contemporaneidade em que a geração de “Orpheu” e da “Presença” co-residiam.

4.
Gaspar Simões reconhece em Pessoa a excelência poética e percebe o tesouro que significa, para Portugal e para a Humanidade, a existência do poeta dos heterónimos. Mais: entende, à luz da preclara descoberta do valor de Pessoa/Caeiro/Campos/Reis/Soares, o privilégio que é poder alguém conviver com um génio vivo, no durante da sua mortalidade física. Isto é, a vantagem cósmica de poder falar com o Poeta (de viva voz), interrogá-lo, corresponder-se com ele, convidá-lo a participar em projectos literários comuns, vê-lo beber café ou vinho, ouvir-lhe comentários, piadas, silêncios oblíquos.

5.
Devo recordar que o próprio João Gaspar Simões, além de crítico e ensaísta, era escritor (sobretudo, no domínio da narrativa). E ele compreendeu que o seu culto de Pessoa não significava apagamento-de-si-próprio-Gaspar Simões, antes a lúcida consciência de que o lugar desse Poeta era único e não configurava qualquer território de disputa ou de assassina rivalidade. Acho que esta relação lembra a de Jorge Valdano com o mago Maradona, na selecção argentina de futebol. Aquele sabia bem da superioridade deste, a qual aliás não coibiu o actual director desportivo do Real Madrid de severas críticas à irregular conduta de Diego. (Certo dia, conta-se, cansado dos caprichos e inconveniências de Maradona, que se julgava acima de regras e regulamentos comuns, Valdano disse-lhe: “Atenção, Diego! Lembra-te de que jogas como divinamente, mas não és Deus!”) Mas Jorge Valdano estimava sinceramente o compatriota e foi dele o mais generoso admirador.

6.
Eu conheço o Daniel Abrunheiro há uns bons 35 anos. Ele é mais novo do que eu onze meses apenas, e só foi “mais velho” durante uns tempos porque – como me afirmou certa noite de copos, em Coimbra – perdera, antes de mim, o pai; essa nuance desfez-se, entretanto, com a morte traiçoeira do meu próprio progenitor, em Fevereiro recente.
O Daniel, como alguns espíritos contemporâneos já vão também percebendo, é o maior poeta português do século XXI. Sei que o futuro há-de confirmar esta verdade. Em ensaio famoso, T.S. Eliot explica que a noção de “clássico” implica a existência, num autor e numa obra, de uma força e de um poder verdadeiramente incomparáveis com o legado (linguístico-literário) anterior ou coetâneo. O exemplo de que Eliot se serve é Virgílio, cuja importância determina a fatal falência do Latim, (e)levado ao limite das suas possibilidades de “dizer”, e origina a concomitante emergência de novas línguas. A partir de Virgílio, nada resta aos vindouros, residentes na língua latina, senão seguir, imitar e, ai deles, repetir o Mestre.

7.
A caricatura eliotiana é útil para o que vos quero dizer. É que o (futuro clássico) Daniel anda a fazer “isto” com a língua portuguesa há uns quinze anos, pelo menos. Apenas Herberto Helder terá viajado por caminhos semelhantes no que toca à reinvenção do Português na poesia. Uma, ainda que breve, visita ao seu blogue (canildodaniel.blogspot.com) facilmente confirmará o que afirmo.

8.
Há ainda outro aspecto em que o Daniel Abrunheiro se (me) confirmou escritor na plena acepção do termo, pagando o “preço” que realmente é necessário para merecer o estatuto: ele assumiu o papel central da escrita na sua vida, como irremediável modo de existência. Ora, para quem não é (figas, canhoto!) Rodrigues dos Santos, Sousa Tavares ou Rebelo Pinto, esta assunção não é, em Portugal, fácil. E por isso, o Daniel Abrunheiro é, normalmente, um cidadão pobre de meios e recursos materiais. Como seu amigo, deploro a circunstância; como amante da literatura, entendo-a.
García Márquez explica, em “Viver para Contá-la”, que tudo quanto fez no tempo prévio ou simultâneo ao seu reconhecimento sul-americano e mundial como grande escritor, que não se tratasse de escrita literária, não foram senão desvios, excursos, coisas secundárias. No centro, estivera, pois, sempre a literatura. Esta opção implicou dificuldades financeiras, incompreensão do mundo utilitário circundante, desprezo familiar e social, opróbrio. Mas radicou na certeza absoluta e misteriosa de que a literatura era “o (seu) caminho”. É assim, vista a realidade como eu a vejo, com Daniel Abrunheiro.

9.
Sei do que falo. Eu confesso que não seria capaz de sacrificar tudo (ou quase tudo) pela escrita. Mas sei que os grandes escritores (mesmo Torga, disfarçado de médico; mesmo Vergílio Ferreira, disfarçado de professor) o fizeram, o fazem.
Reli, há poucos dias, numas velhas folhas que recebi do Daniel Abrunheiro, pelo correio, quando este grande poeta estava em Lisboa a estudar no CENJOR, uma metáfora sobre desempregados. Ora, as metáforas importantes aumentam-nos em linguagem, em conhecimento e em aptidão para humana e esteticamente sentirmos o mundo. Esta do Daniel, em particular, ainda ontem me revisitou, à entrada do centro de emprego da minha cidade: quatro ou cinco homens baços, encostados à parede, fumavam. O Daniel diria que ali estavam, indeterminados e economicamente quantificáveis, como um “código de barras”.
Certo dia, encontrei num dos seus blogosféricos textos do “Canil do Daniel” a mais formosa definição de memória que se poderia escrever (e que Agustina decerto não desdenharia): “O amor é cego. A memória é o cão do cego.”

10.
Sinto esta urgência, semelhante talvez à de Gaspar Simões relativamente a Pessoa, de redizer ao mundo uma evidência: anda por aí, insuficientemente notado ainda, o maior poeta português do século XXI. Lede, por exemplo, “Cronicão” (Ed. Publicenso), “O Preço da Chuva” (Pé-de-Página), “Terminação do Anjo” (Portugalia), ou visitai-o no seu blogue e confirmai o que digo.

11.
O meu tributo não é puramente altruísta. Há uma parte de glória do Daniel Abrunheiro que recolho para mim próprio: a de que este altíssimo escritor é meu amigo. Com maiúscula, aliás: Amigo.

Coimbra, já 24 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra data de 1995, quando – a convite do poeta João de Mancelos - o Daniel apresentava, em Aveiro, o meu livro “Desapontamentos dos Dias” (Coimbra, A Mar Arte, 1995).]

4 comentários:

dromofilo disse...

O Abrunheiro é um grande, grande escritor. O quase anonimato do Abrunheiro dói-me sempre que visito o seu blog, porque a sua escrita tem um fulgor que não encontro em nenhum escritor português das "novas gerações".

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Bem-vindo(a).
Registo a confluência das nossas opiniões.
Se não for violência excessiva, diga-me (-nos), em próximas visitas, o seu nome.
Abraço.
JJC

dromofilo disse...

Também nós temos cumplicidades biográficas.Também eu, como o Jorge e o Daniel, andei na Escola Básica e Secundária da Pedrulha e cursei, como ambos, Letras em Coimbra. Mas, é claro, ambos o sabemos, a excelência da escrita do Abrunheiro não carece de condescendências críticas amicais e empatias biográficas; está aí: na poderosíssima imaginação semântica e vocabular,na audácia sintáctica e imagética, na assombrosa poética da atenção e da solicitude pelo Mundo.

Saudações

Paulo Rui Ferreira

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo Ferreira,
estamos entendidos! O que diz, sobre o Daniel, em matéria de domínio da Língua e de Poética, é exacto. Abraço!
JJC