Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Infância


É quase Setembro. Vamos para a Praia de Mira logo no dia 1. A nossa casa fica perto do Café S. José, a uns cem metros do areal. O nosso barco é o azul; o amarelo é o dos do outro lado que nós odiamos porque são do outro lado. Pescadores e bois hão-de gritar antes e depois das redes. O meu pai diz que vem já mas demora muito. A minha mãe leva, para o interior da tarde daquele Verão, pão com marmelada e limonada dentro de um saco gordo. A água está alegre como um cão jovem antes de morrer atropelado. A Fátima, o Tó e eu fazemos queixa uns dos outros e depois somos, juntos, a tarde mais pura que alguma vez fomos. O Nelo ainda não nasceu. O meu pai ainda mora connosco e diz-canta, durante o banho, que os olhos castanhos, talvez da minha mãe, têm encantos tamanhos e são pecados dele. A tia Rosário ainda não apareceu no obituário do Diário de Coimbra. O meu pai mete-se com as estrangeiras e a minha mãe amua. Há tanto mar em frente, naquele regaço da minha infância única, que a vida parece infinita. Ainda não sei que um dia terei um cunhado alegre como a água de Mira, que há-de ser atropelado pela morte muito antes de voltar o Verão. Ainda não sei que podemos amar um cão e perdê-lo na estrada fronteira à Renault. Ainda não sei que o meu pai vai demorar para sempre.Comemos uma breve bolacha americana, tão breve que de repente já não existe. A mãe diz que amanhã há mais se nos portarmos bem. Portugal vai à final com a Espanha, no mundial de hóquei em patins. Acho que os do barco amarelo roubaram o dia, porque não há sol senão do outro lado. É noite, junto ao barco azul, subitamente. O Café S. José está fechado. A tarde não voltou mãe. A bolacha americana o quê?

Ribeira de Pena, 10-02-2010.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

Anónimo disse...

Ao ler isto, lembrei-me disto.Só então me apercebi da dinâmica decidida, incisiva, impulsiva e maquinal do texto, o que faz muito sentido para mim, já que não consigo alhear a expressão plástica, o envelope, da sua razão intrínseca, o conteúdo. É engraçado conseguir passar um qualquer e aparentemente banal momento, para palavras que, num repente, nos mostram que não há momentos banais.


Levantou-se com uma urgente vontade de mudança.
Tomou um banho, vestiu-se, calçou-se, maquilhou-se, perfumou-se, colocou a carteira ao ombro e saiu porta fora.
Chovia. Detestava os dias de chuva. Deixavam-na mole.
Mete-se no carro, pega no comando e aponta-o ao portão. Ouve o familiar ranger do dito, liga o carro, mete a mudança adequada. Vai-se.
Para onde vai ela? Ela própria não decidiu. Vai e chega-lhe por agora.
Chegou. Sai do carro. Abre o guarda-chuva. Esboça uma pequena corrida. Entra. Cumprimenta. Coloca o guarda-chuva no sítio adequado. Dirige-se à cadeira vazia e senta-se. Nisto levanta-se e agarra uma revista. Senta-se. Folheia, metodicamente a revista, sem deter o olhar em coisa nenhuma. Espera, pacientemente, pela sua vez.
À hora marcada, senta-se na cadeira que lhe indicaram. Liga o botão da massagem e sente o afago da máquina nas costas. Gosta. Pedem-lhe que se afaste um pouco. Afasta-se complacente. Colocam-lhe o resguardo. Molham-lhe a cabeça. Sente a carícia da água quente. De novo gosta. Colocam-lhe o shampoo. No entretanto, massajam-lhe a cabeça. Não gosta mas não diz nada. Retiram o shampoo, colocam amaciador. De novo massajam. Passam por água. Tiram o excedente de água com uma toalha. Retiram a toalha e colocam outra nova com a qual lhe envolvem a cabeça. Desligam o botão da massagem. Pedem-lhe que se sente noutra cadeira, desta vez sem massagem. Assente.
- Então, como é que vai cortar? – perguntam.
- Curto – responde.
- Muito curto – acrescenta.
- Tem a certeza? – perguntam.
- Absolutamente – confirma.
Cortam, cortam, cortam, cortam. Ela olha, olha, olha, olha. Alegra-se. Arrepende-se. Entristece-se. Mentaliza-se.
Olha de relance para o espelho que lhe mostram. Responde laconicamente que sim, que gostou. Levanta-se. Dirige-se ao caixa. Pergunta pela conta. Dizem-lhe. Paga. Pega no guarda-chuva. Despede-se. Sai.
Entra no carro. Liga o carro. Mete a mudança adequada. Faz pisca. Faz-se à estrada. Vai. Chega a casa. Abre o portão. Mete o carro. Fecha o portão. Sente o frio nas orelhas, agora descobertas. Gosta. Entra em casa. Vê-se ao espelho. Não sabe se gosta. Olha de novo. Está mais leve. Não sabe ainda se gosta. Sabe que mudou. O dia era de mudança. Cumpriu-o.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Não há, de facto, momentos banais. A literatura "vê" o essencial, o lado de lá (ou de dentro) da casca aparente e viulgar.
Gostei do seu texto. Deveria tê-lo assinado.
Abraço!
JJC