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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Eu e Ruy Belo: Problemas de habitação


Se o poeta Ruy Belo ainda estivesse vivo, teria hoje 76 anos (completaria 77 no final deste mês de Fevereiro). Mas o texto que se segue decorre do facto de Ruy Belo, que faleceu há mais de três décadas, não ter efectivamente morrido. Procurarei explicar-me, já a seguir.
Comprei casa com empréstimo bancário. Pus nela as minhas poupanças, a minha ideia de lugar amável, os meus livros, a minha família. Depois, a casa foi envelhecendo e os juros da Euribor foram subindo. Por ser tão custoso mantê-la, é muito difícil não desistirmos da casa; mas é igualmente inviável não termos uma habitação.
O preço de viver não se mede apenas pelo spread, pelo Banco Central Europeu ou pelo valor do crude. Basta dizer que o Verão vai acabar; que a minha mãe viajou de bela a velha em segundos; que o meu pai morreu no ano passado antes de falarmos; que já me vai faltando a ingenuidade essencial de acreditar.
A poesia sabe disto?
Ruy Belo, poeta “administrador” (vidente) “da tristeza”, sabia. Poucos versos foram capazes, como os seus, de cruzar a frágil terrenidade da existência com uma espécie de Absoluto lindo que é esta ideia de tudo talvez ter um sentido. De haver talvez formosura para lá da usura. De haver talvez Tejo para lá do Tédio. De haver talvez Belo para lá de Ruy.
“É muito triste andar por entre Deus ausente”, senhores. Mas dizê-lo assim, de forma tão por dentro do coração e da lucidez, é uma possibilidade de trazer Deus (ou algo parecido) à realidade incompleta e fragmentária dos caminhos humanos.
Há, depois, essa genial coerência do verbo e da ideia, em Ruy Belo. E, a esta luz, até a revisitação dos seus títulos é um exercício útil: Aquele Grande Rio Eufrates; Boca Bilingue; Homem de Palavra[s]. A Margem da Alegria; Toda a Terra; Despeço-me da Terra da Alegria; O Problema da Habitação. Com estes títulos (aliás, versos) faz-se já um belo poema sobre o poeta e a literatura em geral, não faz?
Ler poesia não resolve o meu problema de habitação. A poesia de Ruy Belo não resolveu o (meu e seu) problema de habitação. Mas ajuda a, dizendo-o, ver o problema que temos (que somos) – e isso, acredite-se ou não, aquece e consola como o sol no inverno.
Pelos versos de Ruy Belo, o meu poeta preferido (de mãos, sei enfim que “Deus é perto como uma árvore”. A árvore tem o nome do meu poeta preferido.

[Nota: Os versos ou expressões que aparecem entre aspas, neste texto, foram colhidos na obra de Ruy Belo, O Problema da Habitação (1962).]

Ribeira de Pena, Fevereiro, 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto escrito em 2008 para “Semanário do Ribatejo, no âmbito de homenagem a Ruy Belo, com o Daniel Abrunheiro metido pelo meio da coisa.]

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