Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Pai


No início de Fevereiro de 2007, telefonei-lhe. O assunto era delicado e vasto: o seu divórcio recente, o acordo por formalizar, os bens por dividir, o tribunal, os advogados, o notário. Adiámos a conversa para a semana seguinte, quando eu estivesse em território coimbrinha.
Essa minha viagem, por alguma razão, não se fez. Novo adiamento, pois.
Duas semanas após a nossa conversa, fui finalmente a Coimbra. Alguém, no dia seguinte, disse à minha mãe que o ex-marido havia sido operado, “de urgência”, no Hospital da Universidade. Tremi à notícia. Telefonei a meu pai, duas vezes, nesse dia. Ouvi o toque prolongado das chamadas sem resposta. Pensei: adia-se. Falaremos depois.
Soube, entretanto, por terceiros, que a operação correra bem e o meu pai voltara já à sua casa. Passou uma semana.
No dia 23 de Fevereiro (sábado), o telefone interrompeu-me o sono daquela manhã de 2007. O meu irmão mais novo choramingou, menino outra vez: O pai morreu.
De modo que, senhores, fiquei com um encontro por cumprir. Adiado para sempre.
Todos os dias me lembro disso. Todos os dias me lembro do meu pai. O meu pai, aviso-vos, esteve muito longe de ser um pai perfeito. Já me esqueci mais ou menos disso. Mas todos os dias me lembro dele. Todos os dias sinto a sua falta.
O Blaise Pascal diz que o amor tem razões.

Coimbra, 26 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

4 comentários:

mariadaserraverde disse...

o teu blog é tão bonito, JJ...
falo das palavras, claro!
das ideias, pois!
de tudo o que está e não está!
do que é, do que não foi, do que poderia ter sido!
de tudo o que marca e se transforma assim...

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Uma Colega (e Amiga), motivada pela leitura desta crónica, enviou-me um texto que igualmente versa a questão da vida e das perdas que o exercício de viver faalmente comporta. Gostei tanto que pedi para publicar. Fica, por enquanto, neste recanto intimista dos comentários: por decisão inicial, que quero cumprir, não publicarei, até ao dia 15 de Abril, textos de outros autores no espaço principal deste blogue.
Como o texto é algo extenso, aparecerá em duas partes. Obrigado, Ivete.
JJC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Aí vai a 1.ª parte do texto "A Maldade das Mulheres", de Ivete Baptista.

A MALDADE DAS MULHERES (I)
Luís Sepúlveda, um grande escritor chileno, diz num dos seus livros que “Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”. Por isso devemos continuar a falar daqueles que amamos e que já partiram, deixando-nos o coração mais pequeno. Ao recordar o sorriso, o olhar, as palavras e os gestos, eternizamos cada momento passado na sua companhia, como se de um filme se tratasse, sem fim.
A minha mãe morreu a 4 de Janeiro de 2006. Não consegui, durante muito tempo, imaginar o que seria o resto da minha vida sem ela. Não se ultrapassa a morte de uma mãe pois não há nada neste mundo que a substitua. Comemos rebuçados de mentol para compensar a falta do cigarro, trocamos de carro, de casa, de emprego, de cidade, de amigos e até de amores, mas não trocamos a nossa mãe por nada. A nossa mãe sabe sempre o que nos vai na alma, faz o nosso prato preferido quando a visitamos, acende aquela magnífica fogueira ou o fogão a lenha, e nada se iguala ao cheiro que emana dos seus cozinhados, do calor do lume e dos seus braços. Ela é o alicerce, a casa, a força que empurra e faz andar as nossas vidas e o mundo. // Com tenra idade, a minha mãe deixou a aldeia e partiu “servir” para Lisboa. Os tempos eram difíceis e cabia aos irmãos mais velhos ajudar a sustentar a família. A minha avó, viúva com sete bocas para alimentar, não viu outro remédio senão aceitar que os filhos, ainda crianças, fossem trabalhar nem que fosse por uma tigela de caldo e um abrigo. As raparigas tinham mais sorte e normalmente eram requisitadas para criadas nas grandes cidades, nas grandes casas dos grandes senhores. Era assim a sociedade de então, já tão estratificada e injusta, onde a infância era roubada e maltratados os meninos a quem era exigido que fossem adultos ( o trabalho do menino é pouco e quem não o aproveita é louco, diz a sabedoria popular…).

Só muito mais tarde decidi arrumar o quarto dela: Dei as roupas e guardei os óculos de ver. Tentei arrumar na minha cabeça que a tinha perdido. Como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe? // Deixamos sempre para mais tarde as decisões difíceis. É uma forma de adiar os problemas, esperando que uma força superior os resolva, sem dor, sem lágrimas, sem perdas, nem arrependimentos. // Alguém me diz como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe? Como se aceita que não a voltamos a ver, a ouvir, a beijar? Só nos resta o filme incessante a passar à frente dos olhos, as memórias e as fotografias…

Joaquim Jorge Carvalho disse...

A MALDADE DAS MULHERES (II)

Em Lisboa a minha mãe sofreu imenso. Era uma pobre rapariga da aldeia que nada entendia de cozinhados, rendas ou ferros de engomar. A patroa era uma mulher dura, exigente, que adoptou como método para educar os filhos, as criadas e o marido, uma espécie de regime militar. O Toninho e o Zezinho não podiam pisar o risco, pois esta mãe ditadora não perdoava e transformava-se no pior carrasco da triste história da Humanidade. Com as criadas não se atrevia a tanto mas também as castigava, humilhando-as, fazendo-as repetir vezes sem conta a mesma tarefa, até ficar perfeita. “ Isaura, esta camisa está mal passada. O senhor não pode andar na rua com uma camisa neste estado”, mergulhava-a novamente no tanque de lavar a roupa e a Isaura tinha de recomeçar a operação, desde o início. “Ficava-lhe com um ódio, nem imaginas”, confessava muitos anos depois, “ O que será feito dos meninos? Que pena que eu tinha deles, levavam tanta porrada…”, concluía.

Agora já consigo falar dela. Sem raiva de a não ter ao meu lado, sem revolta por me ter deixado tão depressa, quase de surpresa. Consegui arrumar o quarto e deposito flores na sua campa, no dia do seu aniversário, no dia da mãe e no Natal, agora sem magia, sem luzes, sem gargalhadas…
(Mas dói, continua a doer esta ausência imposta, cruel – esta terrível saudade.)

A minha mãe era uma mulher muito bem-disposta. Na sua mesa havia sempre lugar para mais um e partilhava generosamente o que tinha. Adorava estar rodeada de gente feliz que escutava atentamente as suas histórias e as suas canções. Mesmo quando a doença a impediu de ter uma vida com qualidade, presenteava os filhos com as “modas” aprendidas na sua mocidade, em Lisboa. Recordo a quadra de uma em particular, a que ela chamava de “A maldade das mulheres”. Não conheço a autoria da letra mas imagino-a cantada por uma voz e um estilo únicos, bem ao jeito do Marceneiro:

“As mulheres são interesseiras / Falsas e coscuvilheiras / Não se engana quem disser / Sempre a falarem da vida / Não há língua mais comprida / Do que a língua das mulheres.”

Os risos soltavam-se à sua volta e as cantigas lá continuavam, noite fora, como se o tempo tivesse ali parado, como se mais nada interessasse para além daquele lugar, daquelas gentes simples, da mesa, cúmplice da nossa alegria… A minha mãe brilhava mais do que as estrelas reluzentes das noites de Verão… e sabia-o.
“Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”

Vila Real, 2010. Ivete Baptista