Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Mestre João (1)


O texto literário tem, por natureza, um alcance universal. As dores e as glórias do indivíduo escrevente só ascendem à condição de literatura se, entre outros requisitos, puderem ser lidas como dores e glórias da condição humana. A isto há-de acrescer, bem entendido, que a gramática seja respeitada (e, em alguns casos, melhorada) e que haja fundamental beleza na coisa escrita.
Eu creio que a literatura é a minha forma principal de comunicar. Uma linguagem. Quisera ser, em cada texto, como diria Júlio Dinis, uma humilde casa para autor e alguns leitores morarem ou, juntos, estarem.
Se vos trago, pois, de vez em quando, nomes e lugares da minha vida, por favor tomai-os como nomes e lugares que são – também - vossos, da vossa vida e até (sendo a ração melhorada), “a” vossa vida.
O meu sogro chama-se João Ornelas. Em Machico, onde toda a sua biografia se fez, quase toda a gente se lhe refere como Mestre João. O título, prévio ao nome, não é académico; é profissional, de quando ele era “mestre de obras”.
Mas, para além de pedreiro brilhante, este homem foi autodidacta ao longo de toda a vida. Leu mais do que muito mestres uinversitariamente chancelados (anteriores e posteriores a Bolonha). Teve oito filhos e fez tudo por eles; arranjou amigos em todos quantos o conheceram; aprendeu com a experiência bruta do quotidiano, reflectindo e – pasmai – habituando-se a, todas as noites ao deitar, tomar notas (numa eterna agenda de bolso de que nunca se esquecia) das observações e aprendizagens feitas ao longo do dia. Já agora: como todos os sábios verdadeiros, foi sempre uma pessoa humilde. Falo-vos de “um santo”, no sentido em que Eça falava de Antero.
Hei-de aqui contar como o Estado ignobilmente o roubou, no cálculo manhoso da reforma, retirando-lhe noventa Euros ao que normalmente receberia. (Noventa Euros “descontados” de uma reforma de quatrocentos e noventa Euros, atentai, não de uma dessas pensões milionárias que os governantes distribuem por Bancos, Direcções-Gerais e Parlamento.) Ficará para outra altura.
O que hoje não deixarei de lembrar é o tesouro que representa para nós esta gente mais velha e de coração limpo, se houver a humildade e o tempo certos para a escutarmos. Aviso, pois: quero trazer aqui o Mestre João, com regular frequência; quero, gulosamente, inscrever na perenidade do enunciado algumas das pérolas que lhe fui descobrindo e oferecer-vo-las.
E fica, para já, uma só.
Em certa tarde de Agosto, discutia-se a discreta beleza da igreja de Machico, cotejando-a com a imponente igreja de Santa Cruz (de Coimbra). O mestre João conhecia, naturalmente, ambas, e não tomou partido, concordando ora com os partidários desta, ora com os admiradores daquela. Mas quando, a certa altura, se comparava a abóboda de uma com a de outra, interrompeu a assembleia e soltou, num sorriso:
- Ah, isso… A minha igreja ideal é diferente. Não tem tecto.

Ribeira de Pena, 11 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

ELISA disse...

Olá Joaquim Jorge!
Parabéns pela iniciativa.É um prazer poder disfrutar e partilhar estes momentos mágicos.
Um beijo
Elisa

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado, Elisa.
Espero que possa visitar este Mar mais vezes.

Beijinho.

JJC