Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Cão e Noite


São quase quatro da manhã, em Ribeira de Pena. O frio todo do mundo veio passar este breu connosco. Aconchegadas no geral silêncio, as pessoas dormem, confiando no sol que há-de vir. O vento, de vez em quando, assobia pelos ramos do plátano à curva da estrada. Uma janela do prédio bate ébrias palmas às rajadas mais brutas. A minha mulher dorme lá dentro, suspensa das horas, talvez sonhando.
Estou só, na noite acordada, mas quase feliz. Escrevo sobre as personagens secundárias de Júlio Dinis e não poucas vezes acontece-me habitar a aldeia que o escritor inventou. Gostava de poder entrar na loja de João da Esquina e ouvi-lo comentar, escandalizado, duzentos anos antes do Bush e da Sarah Pallin, o evolucionismo de Darwin. “Entrar”, isto é, fisicamente, porque “estar lá” do modo consabido de leitor, isso, há muito que posso (e não é coisa pouca).
Também a vila onde resido mereceria, por certo, o “seu” romance, como – segundo parece – Ovar mereceu de Dinis. Não me tem apetecido; há o problema de eu estar aqui, fisicamente muito aqui, neste contexto tão vizinho e familiar. É muito delicado trazer para a literatura os caracteres humanos que nos rodeiam. Por muito que eu fosse rigoroso (e não acredito que o conseguisse ser; nem sequer acredito que se possa sê-lo), a verdade é que ninguém se gosta de ver ao espelho dos outros. Isso, aliás, explica a deliberada omissão de nome nas aldeias dinisianas: Minho, Beiras, Portugal, todos os lados em geral e nenhum em particular?
Ouço lá fora um barulho semelhante ao da chuva. Espreito da sala. Não chove. É, afinal, um velho cão lazarento, de luto por si próprio, que dorme as tardes e, decerto, as noites nos arredores da igreja do Salvador. Veio ao chafariz dessedentar-se, com vagares de velho proprietário. Penso: é dele a noite. E algo minha, um pouco.
A sede do cão deu-me sede também. A torneira da cozinha chia enquanto o copo se enche: água siberiana, esta. Antes do regresso a Júlio Dinis, espreito novamente a rua. Ao longe, um sino lembra as horas. O cão já lá vai, pachorrento sempre, dono do tempo.

Ribeira de Pena, 12 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

Nelson disse...

Caro amigo,
conseguiste despertar em mim o desejo de revisitar Júlio Dinis e, com este frio, relembrar os "Serões da Província".

Nelson

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Boa ideia! Ando a trabalhar a sua poesia, o seu teatro, as suas (referidas) novelas e seus os romances. E confirmei que é um grande escritor, claro.
Obrigado pela visita, Amigo.

Abraço!

JJC