Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Menina


A minha filha, num instante, tornou-se mulher. A metamorfose deve ter levado anos, admito, pois compreendeu livros e músicas, amigos, viagens, colecção de borboletas, namorado à minhas escondidas, curso superior, empregos - o costume. De repente, aparece-me esta pessoa escandalosamente adulta, dona de opiniões pessoais, com gostos (e gastos) próprios, a tirar a carta de condução, muito ciosinha de certa liberdade só dela e de mais ninguém.
Ora, eu julgo que o mundo está muito mal organizado. Antes que completassem - digamos - quarenta anos, não se deveria permitir que os filhos fossem crescidos. No meu caso, não é tanto por temer que a minha descendente seja incapaz de sobreviver sozinha na selva que a minha geração e as anteriores fizeram do mundo; sei da sua inteligência e da sua força, há-de desenracar-se. Mas, olhai, que será dos pobres pais, abandonados à magra solidão dos dias sem filhos?
Eu e a minha mulher ainda nos referimos, muitas vezes, à tal mulher como "a menina". E acontece que a nossa casa sem a menina é uma renda muito difícil de pagar. A mim, confesso, faz-me muita falta a presença dela no quarto ao fundo do corredor. Quando nos visita, sempre de fugida, é como se o tempo andasse para trás e a vida estivesse outra vez no lugar certo.
A Yourcenar lá explicou que o raio da existência não é senão "un chemin vers la mort". Estrada de ir acabando, portanto. Mas custa muito a gente saber disso na própria carne da biografia.
Se a minha filha, por acaso, me vier ler a este improvável lugar de encontro, talvez sorria. Seja. Mas que não me venha com razões sensatas dizer que a vida é assim mesmo. O tanas! Sensato era a nós termo-la sempre pertinho e, se quiséssemos,irmos ao quarto das borbletas ouvi-la respirar.

Ribeira de Pena, madrugada de 10-02-2010.
Joaquim Jorge Carvalho

4 comentários:

Anónimo disse...

Beijinho :)
Ass:A Menina

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado, Anónimo (ou amónimo, como chobinho, right?).

Beijinho!

Rosa Maria Miranda disse...

Li, em voz alta, "a menina" ao meu irmão que tem a sua "menina" na faculdade e uma estrutura psicológica à semelhança do "pai/autor"...
A respiração susteve-se e o suspiro transbordou pelos seus olhos!
É bom desabafarmos nas palavras de quem tem a arte e o dom de as transmitir...

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Ainda bem que o eu escrevedor se cruza com eus leitores. Assim, é sempre a primeira pessoa. A humana pessoa.
Beijinho, Amiga!
JJC