I
Hei-de saber daqui a muitos anos isto
O presente
A velhinha arrastando um saco do Modelo
A empregada com sotaque do campo
A chuva triste embaciando o entardecer.
Hei-de saber pelo retrovisor da lembrança
A viagem perdida
O tempo dos semáforos incolores
A raiva pelo roubo do plasma
A intranquila voz da filha ao telefone.
Hei-de saber à cabeceira da minha morte
A vida
O que fugia em cada instante nosso
A metamorfose da beleza nas fotografias velhas
O amor emagrecendo até ao essencial
O meu pai em cabeceira anterior à minha.
Hei-de saber o contrário disto tudo
O nada.
O fim devindo de uma gazela correndo num livro
O silêncio depois da música e da vozearia
O indivíduo ao espelho de não existir ninguém outro
O beco ao fundo do aparente infinito.
Hei-de saber o sentido da escrita, já lida
A talvez fénix que voe dos teus olhos
O sabor do café muito para lá da chávena
A carne antecedendo a carne sucedendo à carne
O beijo encarnado no dia concreto e o outro
Seguinte aos lábios e à separação dos dedos –
O resto
O importante.
II
Miraste as mil maravilhosas montras
Durante a eternidade desta tarde comercial.
Raramente percebeste o enfado pouco canino
Do teu cão cansado.
Talvez não visses sequer os olhos tristes
E o uivo escondido entre as mãos nos bolsos.
Deste-me em algumas lojas sacos e cabides
E a tua voz interrompeu o silêncio de ambos
Para queixas sobre os preços e o ar condicionado.
Entre o multibanco e o restaurante, fugi
E revisitei o ouro da tua inocência nossa
(Um vestido largo, uma bandolete, uma canção
Um par de namorados no Estádio Municipal–
Isto é, uma outra eternidade anterior à Ikea).
Quando regressei, havia essa estranha mulher
Carregada de sacos, de pressa, de casadas rugas
E eu encolhi-me, qual ostra afásica
No umbigo do tempo.
Em todas as montras se via a nossa morte,
Amor.
III
Sobes as escadas cheia de idade
E há muito mais degraus que tempo.
Olhas o céu antes da chuva e talvez rezes
Lá desse subterrâneo esconso da solidão que és –
Compraste peixe de mares estrangeiros
Para o almoço reformado das viuvezes lusas.
Tens os olhos azuis, acho que cegos
Como Deus.
O peixe há-de saber-te a outra coisa diversa de peixe
E ainda falta a noite.
IV
Veio o vento e nada.
Vieram remos e nada.
Veio electricidade e nada.
Vieram motores, maus humores, rumores
E nada.
Este barco não anda, lamuriou-se o arma-
Dor.
Mas veio o arrais e o barco partiu.
Por que te atrasaste, perguntou o patrão.
Estive a sonhar, disse o arrais,
Para haver viagem.
Ribeira de Pena, Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
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