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Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sino de Sina


Um email da amiga Ana (da Lousã) trouxe-me à lembrança, hoje mais do que habitualmente, a imagem do Francisco Botelho, um ribeirapenense (do tamanho do mundo) que nos deixou muitas saudades. Republico um texto que lhe dediquei oportunamente.

(In Memoriam Francisco Botelho)

Há cerca de doze anos, quando cheguei a Ribeira de Pena, recebi um convite de um tal Francisco Botelho para colaborar com o “Ecos da Ribeira”. O dito senhor era o director, então, desse jornal e o convite, em boa verdade, não se dirigiu exclusivamente à minha pessoa – era para todos os professores e alunos da E. B. 2, 3 / Secundária de Ribeira de Pena.
Sem o conhecer, achei (logo) boa a ideia. Eu já colaborava com o “Diário de Coimbra”, na minha terra de nascimento; Ribeira de Pena aparecera na minha biografia, nada mais natural que inscrever essa nova circunstância na pessoal dimensão escrevedora que já cultivava.
A minha primeira crónica, no “Ecos”, chamava-se “Sina de Sino” e falava de tempo, de rituais, de morte. De vida, afinal. O cronista dava-se aí conta de como, em Ribeira de Pena, os sinos de igreja marcam, repicando, os nascimentos, os casamentos, os óbitos, as quadras religiosas. E de como, tudo junto, não era senão a inexorável marcha de relógios e calendários rumo ao fim.
O Francisco Botelho gostou do que leu. Publicou o texto, enviou-me um exemplar do jornal e cumprimentou-me, num bilhete-postal bem escrito, com caligrafia impecável. Continuei a colaborar e, de vez em quando, sugeria outros colaboradores (alunos, colegas; textos, desenhos).
Certo dia, o Francisco Botelho achou que era tempo de nos conhecermos pessoalmente. Conhecemo-nos pessoalmente, pois. À imagem, um pouco preconceituosa, que eu já tinha deste homem (um “gentleman” algo distante, quase olímpico), acrescentei a bonomia, o sentido de humor, a inteligência e a cultura humanista de um ribeirapenense cheio de mundo. Pensei: com tempo, este senhor haveria de ser meu amigo.
Passou tempo. O Francisco Botelho tornou-se meu amigo.
Certo dia, à mesa do jantar, no “Cantinho do Churrasco”, quando eu falava da triste ironia da vida que, tão rapidamente, me levara um cunhado (vítima de doença fulminante) e meu pai (morto por traiçoeira hemorragia), ele comunicou-me placidamente a sua própria, recente, fatal doença. Fiquei silencioso como um peixe ausente de água. Ele acrescentou, com improvável optimismo, que a (sua) sobrevida podia ir até aos dez anos.
Nunca estive com ele sem o ouvir falar de projectos: o blogue na internet; sociedades de desenvolvimento; palestras; tertúlias; ciclos de cinema; encontros com jornalistas; ideias para desenvolver o turismo em Ribeira de Pena; eventos literários; aventuras camilianas. Tive o prazer de com ele partilhar algumas destas ideias e de, sempre que ele mo solicitava, ajudar no que era capaz.
Na pessoa do Francisco Botelho conviviam a generosidade e a clarividência. Dou-vos um exemplo: o “roteiro camiliano” foi ideia sua e dele dependia, mas ele promoveu estrategicamente, em devido tempo, a formação de sucessores.
Ultimamente, as “meninas dos seus olhos” chamavam-se Auditório e Biblioteca Municipais. Ouvi-o, durante horas, discorrer sobre modos de dinamizar esses espaços, de os aproveitar para elevar a “cultura” à “Cultura” (da medíocre minúscula à apetecida maiúscula).
Um grande escritor português, Alexandre O’Neill, falava (fala, porque os escritores são por natureza imorredoiros) do amor como única forma de combater a morte. Com o Francisco Botelho, essa formosa ideia foi acrescentada de um remédio igualmente digno e belo: a morte combate-se com a vontade de fazer coisas, de realizar futuro. O contrário da morte é a gente não se contentar com o presente e ter, em permanência militante, os olhos voltados para o que há-de vir. Para o que falta. O contrário da morte, à luz do meu exemplar Amigo, é ter esperança.
Francisco Botelho foi um ribeirapenense grande. Vamos todos ter saudades da sua lucidez, da sua inteligência, da sua visão, do seu brilho sensato. Eu bem vi, tantas vezes, como eméritos universitários, especialistas em Camilo, se curvavam perante a profundidade e a pertinência das suas abordagens à vida e obra do autor de “Como ela o amava!”. Eu bem vi como visitantes ilustres se encantavam com o seu verbo escorreito e luminoso. Eu bem vi como, à sua roda, se estabeleceu um manto consensual de admiração e respeito em Ribeira de Pena, não obstante as suas (conhecidas) simpatias político-partidárias.
Este texto não é um tributo ao Francisco Botelho, porque é demasiado pobre para tal. Tão-pouco é um “adeus”, porque eu não me despeço do futuro. É uma coisa mais singela.
É o meu sino pessoal repicando a sina de todos os homens dignos: não esquecermos quem partiu, em nome do futuro. Abraço para ti, Botelho!

Joaquim Jorge Carvalho

[Publicado no “Ecos da Ribeira” (Ribeira de Pena), em Fevereiro, 2008.]

2 comentários:

mariadaserraverde disse...

Só hoje me apercebi deste texto, Joaquim Jorge...
e é verdade que as pessoas que amamos permanecem para sempre vivas no nosso coração...

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Abraço, Amiga!
JJC