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Número de Ondas

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (13)


O Tempo

Era uma vez, no futuro, um reino tão desenvolvido que, de acordo com cálculos rigorosos, se tornara possível medir (com pequeníssima margem de erro) o tempo que cada cidadão tinha de vida. A contagem decrescente começava no exacto dia em que se registasse o nascimento de um indivíduo. Análises ao sangue, à urina, às fezes, à pele, aos olhos, às unhas, às raízes capilares, etc. – permitiam ao médico de serviço a elaboração de um relatório rigoroso, discriminando os anos, os meses, os dias (e, em certos casos, até as horas e os minutos) que “restavam” ao recém-nascido.
Por esse motivo, os habitantes daquele reino futuro viviam na iminência da respectiva morte, um pouco à imagem tradicional dos faraós observando a construção do próprio túmulo: cada dia, cada pedra, ai, era um passo mais rumo ao desaparecimento final.
Muito raramente havia agressões entre os indígenas ou guerra com reinos periféricos. As gentes daquele lugar sabiam bem que todo o tempo era pouco tempo para a vida, o amor, a felicidade. O conselho de ministros, presidido pelo catedrático Dinis, recomendava muitas vezes à população esse cuidado fundamental: distinguir o essencial do acessório.
Naquele reino do futuro, os homens e as mulheres abominavam a burocracia, as filas de trânsito, as conversas de circunstância e os atrasos em geral. Tinham da vida (como atrás se procurou dizer) a noção de fruto morredoiro, provisório, esgotável – e faziam tudo quanto podiam para aproveitar cada segundo.
Na disciplina delicada do amor, essa cultura obrigava a reduzir drasticamente os motivos das zangas e dos amuos. E, nos casos em que era impossível evitar lágrimas, separações, rupturas, havia nos namorados uma urgência invulgar em reatar laços, resolver disputas, clarificar os dias; sucediam assim, com invulgar celeridade, os casamentos, as flores, os noivados, os suicídios, os poemas, as canções, os passeios pela margem dos rios ou das praias.
Foi neste contexto, curtamente descrito, que Jack convidou Debra para uma viagem de um dia, sob o pretexto oficioso de uma audiência em tribunal, em Buckingham, cidadezinha inglesa com universidade, fábrica e prados à volta. Vinham ambos de Londres, nervosos e silentes, porque aquela era uma segunda-feira grave: iriam fazer amor pela primeira vez.
Jack, farmacêutico, cinquenta anos, casado, sabia - de sua existência – que faltavam só vinte e um anos para morrer. Debra tinha menos onze primaveras que ele, e cabia-lhe a precisa esperança de (ainda) quarenta anos de vida. Era divorciada, professora de música, sem filhos, e gostava, sem perceber muito bem porquê, de pintura impressionista.
Amaram-se talvez ao terceiro dia de conversa. Descobriram-se cúmplices de gostos, tiques, canções, literaturas, modos de ver o mundo. E, atendendo à urgência consabida do relógio, organizaram o primeiro dia para o amor, com pressa e minúcia notáveis, optando por um pequeno hotel a centenas de quilómetros da city, bem longe dos olhos judicativos da convencional vizinhança.
A ideia, em boa verdade de ambos, foi verbalizada por Jack:
- E se nós…
- Na próxima segunda-feira, meu amor.
Por ali, à hora das estrelas escapando-se às aves do olhar (vindo-se) da mulher, caíra já a noite e o nevoeiro. Mas uma espécie de luz atravessava a carne opaca da neblina e, a espaços, coloria as gotas de chuva inglesa na janela: como, digamos assim, pedras preciosas caindo ar.
Quando, extenuado, Jack desfalecia de ternura, e Debra (com lágrimas) se afundava no peito do farmacêutico – plenos ambos -, um certo silêncio inundava docemente o quarto alugado. Não um silêncio de nada, como também há; um silêncio de tudo. E a única circunstância capaz de ferir aquele espaço perfeito era o tique-taque de um Big Ben em miniatura, preso à parede por sólida ferragem.
Naquele reino do futuro, depois de feito o amor, era costume o homem contabilizar mentalmente o tempo que ainda havia para ser feliz. Essa consciência conferia ao momento fruído a sua dimensão única e irrepetível (o seu valor); mas igualmente incomodava os corações dos indivíduos pensadores, vítimas a prazo da morte a haver.
Pelo que, naquele dia, simultânea às lágrimas de Debra, deu-se em Jack a percepção sábia de que a mortalidade é uma coisa bela e muito triste.

Ribeira de Pena, 27 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 13.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). Foto (fabricada para a ocasião) de JJC, Ribeira de Pena, 26-02-2010.]

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