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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (9)


O Tesouro

Um homem cava – ao sol, à chuva, durante a manhã, durante a tarde, durante a noite – a terra suja de um recanto florestal.
Passam pessoas pelo local e, de genérico modo, riem-se, comentam jocosamente, reprovam-no com murmúrios, berros ou silêncios. Alguns dos passantes chegam a insultar o homem que cava a terra, e há mesmo entre eles quem atire pedras e paus ao cavador.
A cena dura horas, dias, meses, talvez anos. O homem cava sempre. Às vezes, cansado, morrente, triste, desesperado. Mas sempre cavando.
Multidões de transeuntes observam, reobservam, riem, criticam: um homem (dizem) tão novo, tão inteligente, tão bom, assim perdendo seu tempo, sua força, sua juventude, sua beleza, seu talento, em tarefa (dizem) tão suja, tão (dizem) inútil.
O homem cava à procura de um tesouro que existe, algures, por ali, sob a terra negra. Há-de valer a pena o sacrifício inteiro se as mãos do homem chegarem a tocar no tesouro escondido. E outra não pode ser a resposta do homem aos risos e vitupérios da multidão convencional, tão outra de si e da sua fé.
Reside nesta história, como se adivinha, o risco de o homem não encontrar o tesouro procurado. Mas não é esse motivo bastante, não é esse motivo digno e legítimo para suspender o exercício cavador e crente. É destino do homem (considera o homem) buscar, na terra preta que pisa, o valioso golo que anima a sua vida desde sempre. Já se disse o quê: um tesouro.
Entre os homens e mulheres que riem, há os que nunca souberam do tesouro escondido; os que, sabendo, nunca acreditaram no tesouro escondido; os que, acreditando um dia, desistiram entretanto de acreditar no tesouro escondido; os que, não tendo desistido de acreditar, perderam a força necessária à procura do tesouro escondido; e ainda os que, embora acreditando sempre e muito querendo encontrar o tesouro escondido, fingem o contrário, à espera de um tempo certo para cavar, longe dos olhares judicativos da multidão a que pertencem.
A natureza do amor só se percebe bem com um intervalo crítico de cinquenta anos. Porque a maior tragédia, na vida, não é um cavador de tesouros jamais encontrar o objecto da sua busca: é, cinquenta anos depois, chorar a cobardia de nunca haver tentado.
Sei de uma metáfora (minha) sobre homens e mulheres que não foram capazes de lutar por si próprios. De cavar à procura do seu destino, do querido tesouro de que falo.
É assim a metáfora: um coração antropomorfizado, com rosto, braços, mãos, pernas. O rosto do coração é lamentável como uma criança triste. Os braços estão caídos, desistentes, molemente ao longo do corpo.
O coração está sentado. As pernas do coração estão imóveis, jazendo suspensas da superfície do assento.
O assento em que o coração está residindo, ao longo da metáfora, é uma cadeira de rodas.
O resto da paralisia são duas ou três nuvens magras e negras, pairando sobre o coração. De certo modo, o desenho das nuvens lembra a biografia melancólica de ratos, no devir de respectivas ratoeiras mortais.

Continuamos esta conversa daqui a cinquenta anos. Entretanto, Margo, a enxada.

Ribeira de Pena, 23 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 9.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A pintura-supra (“O homem com a enxada”) é de Jean-François Millet (1814-1875).]

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