Bússola do Muito Mar

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da Sofia à Portagem


Agora, acontece-me por vezes ir a Coimbra. Mas hei-de ser sempre dessa cidade mediana, desse lugar cheio de passado e algo vazio de presente ou futuro.
Há muito tempo que não percorria, com a produtiva lentidão dos turistas, a Ferreira Borges e a Visconde da Luz.
Não há muitos séculos, eu era jovem e imortal nesse território mais coimbrinha de todos. Subia, com os outros imortais da minha geração, da rua da Sofia ao largo da Portagem (passando por Santa Cruz – igreja e Café – e pelo quiosque da irmã do Daniel), mirando montras, raparigas, senhoras, circunstâncias.
Depois, descíamos, repetindo o ofício olhador. Aos percursos ascendentes e descendentes chamávamos “piscinas”.
Na manhã de 22 de Fevereiro, vi os mesmos velhos, junto ao Café Santa Cruz, explicando, com outros nomes, a crise política e a falta de vergonha do século (agora) XXI. Os mesmos pedintes de há 30 anos farejam esmolas, preambulando as missas, exibindo doenças de pele e filhinhos com fome. Tricanas do liceu e da universidade passam, rápidas, a caminho do futuro. O homem das castanhas arrefece serodiamente, esperando clientes. Senhoras carregam pequenas e médias adiposidades, sob perfumados casacos compridos. Jovens e maduras usam botas altas, trotando sobre a calçada portuguesa com reforçado garbo. Um rapaz expõe, no chão, catorze livros usados (um deles é “Terna é a Noite”, do Fitzgerald), que ninguém compra. Mais acima, para quem sobe à Portagem, há um vendedor de artesanato, cheio de fadiga nos olhos, que explica a duas jovens loiras qualquer coisa sobre o governo angolano. Uma mulher com sotaque do campo, junto às escadas que descem para a Sé Velha, cumprimenta o proprietário de uma loja de desporto.
Quase no topo da viagem, no lugar onde era o Café Arcádia, cruzo o meu olhar com uma montra ainda por decorar. Espelhado no vidro, está um homem de 46 anos, muito distinto do imortal que, em 22 de Fevereiro de 1981, subia aquela espécie de Chiado conimbricense, a caminho, então, de um galão tranquilo e de um bolo de arroz (e talvez d’A Bola e do espectáculo do mundo).
No largo da Portagem, passa um velho a vender cautelas. Cumprimenta-me, como se me conhecesse. Quem sabe? Eu bebo, na velha Briosa, um café que atenua, por segundos, o frio da manhã e busco, em redor, o imortal de 1981. Há-de ser já tarde para me encontrar com ele: por 29 anos nos perdemos um do outro.

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

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