Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O valor da metáfora



      A metáfora, como eu a entendo, é a cósmica tentativa de articular a verdade com o verbo humano. Radica numa espécie de consciência do défice da linguagem normal, e na concomitante necessidade (urgência até) de criar modos de dizer o que, existindo, não se explica facilmente, normalmente. Um dia, em viagem de automóvel, à conversa com a minha filha, percebi isto muito bem.
Ela tinha, então, quatro anos. Íamos buscar a minha mulher, que trabalhava a quarenta quilómetros da nossa residência. Para entreter a monotonia das rectas, eu ia falando, contando histórias, questionando-a. A miúda respondia com a simplicidade (de modos e de vocabulário) que a sua pouca idade explica. A certa altura, perguntei-lhe se gostava de mim.
Ela respondeu: «Gosto.»
Perguntei-lhe se também gostava da mãe. Ela disse: «Também.»
Levantei a fasquia da dificuldade e perguntei-lhe se gostava mais da mãe ou do pai. A miúda levou mais tempo a responder, mas desenrascou-se bem: «Gosto dos dois.»
Prossegui a entrevista, complexificando a conversa, já talvez adivinhando a sua desistência iminente: «Quanto é que gostas de mim?»
Ela, cada vez mais embaraçada, foi ainda capaz de se exprimir: «Muito.»
Temi pela minha filha, tão à beira de um esgotamento lexical, mas arrisquei ainda: «Muito, quanto?»
Caiu então um mui espaçado silêncio sobre a noite. A menina decerto sentia a resposta, mas não havia (em seu pobre vocabulário de infante) palavras para dizer o que inteiramente sentia. 
E nós passávamos enfim por Cantanhede, a caminho da vila de Febres, quando ela, interrompendo silêncio e breu, apontou para o maior edifício à vista e exclamou: «Gosto de ti aquela casa toda!»
Entendeis? A minha filha tinha descoberto a metáfora e oferecera-ma.

Ribeira de Pena, Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto foi por mim revisto no dia 28 de Julho de 2015, aquando do envio de uma crónica para o jornal O Ribatejo, com o qual comecei a colaborar nesta data. O nome que escolhi para o meu espaço, neste jornal, foi "Zona de Perecíveis". Na origem desta nova imprudência está o meu Amigo Daniel Abrunheiro.]

1 comentário:

Vânia Carvalho disse...

Gosto de ti aquela casa toda!