domingo, 25 de abril de 2010
Um Cravo no Coração
No dia 24 de Abril de 1974, eu tinha onze anos (feitos há nove dias). Deitei-me cedo, mas devo ter permanecido acordado boas horas, lendo. A meio da noite, ouvi decerto a minha mãe murmurar algo sobre a conta da electricidade, enquanto apagava a luz e regressava ao leito. O meu pai ressonaria, talvez, menos morto que hoje.
Muito de madrugada, ouvi a Dona Lurdes, vizinha de cima, avisar-nos da confusão “lá em Lisboa”. “São os estudantes?”, perguntou a minha mãe. “Não”, respondeu a Dona Lurdes, “desta vez, parece que são militares.”
No léxico doméstico, aquilo dos militares rimava com guerra. Ficámos todos inquietos e, não sem receio, os meus pais deixaram-nos ir para a escola, recomendando silêncio e decoro sobre o que a rádio dizia.
A rádio dizia, ainda, pouco. Tocava marchas militares e o hino nacional, dava as horas e, de vez em quando, reproduzia comunicados da Junta de Salvação Nacional.
Depois, fui descobrindo que “aquilo” era o princípio da liberdade. Que vivêramos, até aí, numa coisa chamada ditadura (ou fascismo), ao arrepio da europa moderna. Nem dois dias depois (ou três?), também eu gritei “Morte à Pide”, na Rua Antero de Quental, junto ao edifício-sede da dita, ali onde depois se instalou – lagarto, lagarto! – a DREC (Direcção Regional de Educação do Centro). E, aos árbitros que prejudicassem o União de Coimbra ou o Sporting, passei a chamar, em vez de “gatunos”, “fascistas”. O meu avô explicou-me que eu e o meu irmão Tó já não iríamos à guerra e o meu vizinho Américo garantia que nunca mais haveria falta de bacalhau para o povo.
Trinta e seis anos após esta névoa linda das lembranças, que dizer?
Trinta e seis anos são, em tempo humano, um perigo.
É o suficiente para nos morrerem pessoas queridas, para se degradar o cabelo, a próstata e a esperança, para ficarmos cínicos e velhos como os que eram velhos e cínicos em 1974.
É verdade que, hoje, me assalta, às vezes, a suspeita de que as revoluções são como os iogurtes – têm prazo de validade. Quando se fala de alguns políticos, da promiscuidade entre Estado e grandes grupos económicos, de mais Iberdrola que pátria, de gente que foge às domésticas responsabilidades para o remanso anódino da União Europeia ou da ONU, das reformas e prémios dos poderosos – sou tentado a ver tudo como o hiperónimo celebrado por Camilo: corja!
Mas, aleluia, hoje é dia de ter esperança. De nos purificarmos, ao menos pela memória. De dizer obrigado a Salgueiro Maia, ao MFA, aos antigos que acreditaram, no passado, ser possível um melhor futuro. Aquele futuro é este presente. O presente é sempre o futuro por fazer.
Faz, novamente, falta avisar a malta. Faz falta um novo sobressalto ético que devolva a esperança a um país que merecia ser verdadeiramente limpo e livre.
Eu sou por Portugal. Pela liberdade. Pelo 25 de Abril.
Sempre!
Ribeira de Pena, já 325 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A ilustração-supra é de Manuel Vilela, e foi feita expressamente para a capa do libreto da peça “A Noite de 24 de Abril”, que levei à cena em Ribeira de Pena, em 1998. O texto dessa peça foi uma adaptação da obra de Saramago, “A Noite”.]
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Muito, muitíssimo bem.
Muito, muitíssimo obrigado, cúmplice maior disto tudo!
Enviar um comentário