Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Parábola do desconsolo provisório


De vez em quando, há na minha vida de professor alguns pormenores que me salvam do desânimo, da desistência, do nada. Chamo-lhes momentos de consolação (um silêncio bonito no devir de uma leitura; um comentário simpático sobre certa aula certa; uma visita de ex-alunos apenas porque sim; um sorriso embrulhado nos bons dias, inaugurando-iluminando a manhã). Outras vezes, não há, em vinte e quatro horas funcionárias, isso. E, outras vezes, há o contrário disso. Hoje, por exemplo.
Depois de mil acrobacias pedagógicas, de uma ou duas ironias bem sucedidas, de alguns berros (talvez demasiados berros), de cinquenta interrupções forçadas, termino a aula de Francês e desejo bom fim-de-semana a todos. Um aluno (como dizer?) difícil suspira, então, à minha saída: "Aleluia!"
Notei bem na palavra o alívio que a minha partida provocou neste rapaz e, visto o desabafo pelo avesso, percebi o fardo que, durante quarenta e cinco minutos, fora para si.
Se eles soubessem o poder que têm! Se eles desconfiassem de quão facilmente podem destruir um fim-de-semana, uma carreira, uma vida!
Uma voz pergunta-me, cínica, já no caminho para Ribeira de Pena:
"Que andas tu para aqui a fazer, Joaquim Jorge?"
E eu mordo o lábio inferior e murmuro, não sem um íntimo estremecimento de remorso:
"Não sei. Talvez nada. Talvez ande só a cumprir o meu dever. Talvez ande só a pagar as minhas contas. Talvez esteja só à espera de um outro qualquer sítio para onde ir. Talvez seja um pássaro morto (no devir de formosos voos)."
Sabei, senhores, que a minha alegria foi hoje vítima de atropelamento e fuga. Está nos cuidados intensivos.
Pode ser que não morra. Acabei, há minutos, de corrigir 25 ditados de Francês. Amanhã ou domingo, preciso de preparar um teste de avaliação sobre a unidade "Faire des courses" e uma ficha formativa para Língua Portuguesa...


Ribeira de Pena, 27 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia em http://www.overmundo.com.]

4 comentários:

Paulo Pinto disse...

Muitas vezes invejo os colegas que leccionam aos alunos de níveis mais avançados. Ah, se eles soubessem como é estupidificante e desmotivador ensinar só coisas elementares, não ter à frente quem entenda uma subtileza, quem conteste uma asserção! Tenho este ano a imensa fortuna de ter uma turma de 9º ano, mas sei que provavelmente será a última vez (a disciplina de Teatro deve desaparecer, é mais provável que o 2º ciclo se funda com o 1º do que a união dos grupos de recrutamento dos 2º e 3º ciclos).
Dito isto, às vezes também me congratulo. Os alunos de 10 ou 11 anos, na sua pureza e limpidez, não fariam uma maldade como essa que contas. Por vezes são capazes de juntar num belíssimo cocktail o encanto da infância e a fogosidade da adolescência. Segue-se a famosa e penosa idade da parvalheira, e é à luz deste elevado conceito (parvalheira) que deve ser avaliada a atitude do teu aluno (que já foi meu, talvez, antes de encarnar plenamente o conceito). Nós, professores, passamos a carreira a abrir portas - do conhecimento - para outros entrarem, como dizia Willard Waller. E as mil e uma purezas ou parvalheiras que passam por nós a caminho doutra coisa levam-nos por vezes à náusea. É talvez o maior espinho desta profissão.
Um abraço.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, comungo naturalmente de quanto (tão bem) dizes. Mas, como tentei sugerir no final do texto, não desisto. Mesmo os habitantes de "Parvalheira" - como justamente chamas a esse território etário-mental - precisam de professores, de bons professores. Professores (toma lá um abraço) como tu.

JJC

Maria do Carmo disse...

Olá!

Tenho pena que alunos como esses não tenham a capacidade de aproveitar a sorte que a vida lhes reservou em terem um professor assim, de não aproveitarem toda a sua sabedoria e arte. Sim,porque ensinar da forma como o Professor faz é arte.
Sempre lhe quis agradecer por tudo o que me ensinou e principalmente por toda a formação que me "incutiu" de forma gratuita!
O Professor marcou a construção da minha personalidade e isso não se pode esquecer nem deixar de agradecer.
Por isso,só posso dizer:obrigada.

Maria do Carmo Mucha Fernandes

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Queridíssima Maria do Carmo,

foi um prazer e um orgulho ter feito parte do teu crescimento. E é já uma realização o aperceber-me da grande Pessoa em que entretanto te tornaste. Aqui vai um beijinho e a minha estima intemporal! JJC