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Número de Ondas

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Swift, Ferreira Leite e a Suprema Ironia


Fernando Pessoa defendeu, por escrito, a ideia (pouco agradável, convenhamos) de que o nosso Eça era um provinciano e de que o seu muito elogiado uso da ironia era pobre e falho de eficácia. Eu acho que o grande Pessoa estava, aqui, enganado. Mas, no mesmo texto, o poeta de Mensagem deu como exemplo da grande ironia, em literatura, um autor do século XVIII que tive a felicidade de estudar – Swift. E, céus, como (neste caso) acertou em cheio!
O texto que, segundo Fernando Pessoa, provava esta superioridade swiftiana em matéria de ironia é um extraordinário artigo intitulado “A Modest Proposal”, em que o irlandês sugere uma solução "perfeita" para a fome na Irlanda: a instituição do canibalismo entre os mais pobres. Tenho este texto em português, traduzido pelo desconcertante José Vilhena (esse mesmo, o da Gaiola Aberta).
Que se sustenta nesse enunciado? Isto: que dando-se o facto de as famílias economicamente menos privilegiadas terem, regra geral, proles numerosas, bastaria que alguns filhos fossem destinados ao alimento de cada clã (e eventualmente que se vendessem alguns excedentes, i.e., filhos que – ainda assim – sobrassem) para resolver todos os problemas de fome e economia.
A sugestão escandalizou naturalmente a sociedade da época e, ainda hoje, arrepia. Mas, como Pessoa explica, é obviamente aparente esta insensibilidade, este cinismo, esta crueldade. Embora Swift ilustre as suas “ideias” com contabilidade e argumentação rigorosas, a tese fundadora é de tal modo desrazoável que o texto acaba por se desautorizar a si próprio, constituindo afinal a mais eficaz e corrosiva maneira de falar do drama irlandês da fome da miséria. A não ser assim, como indirectamente sugere Pessoa, chamaríamos a Swift um verme indigno da condição de animal racional, um bruto desprovido de alma, um crápula.
Lembrei-me de Swift e de Pessoa quando li, em vários jornais, a afirmação de Manuela Ferreira Leite (produzida na televisão) sobre os idosos que necessitam de hemodiálise e que constituem uma despesa enorme para o Serviço Nacional de Saúde. A ex-deputada e ex-governante entende que estes doentes, se tiverem idade igual ou superior a 70 anos, não devem beneficiar de tratamento pago pelo SNS. A quererem tal, que paguem dos seus bolsos.
Ergueu-se um coro de críticas estuporadas e escandalizadas. Eu próprio, que tenho uma tão amada mãe com 73 anos espumei por minutos. Mas depois percebi que se trata do uso de ironia. Só pode tratar-se de ironia, tamanha é a (aparente) insensibilidade, o (aparente) cinismo, a (aparente) crueldade. A não ser assim, senhores, que chamaríamos a Manuela Ferreira Leite?

Ribeira de Pena, 24 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Swift) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tolanbaranduna.blogspot.com.]

1 comentário:

Anónimo disse...

... não chamariamos nada. Poderiamos coloca-la numa jangada e envia-la para junto do amigo alberto joão. Com sorte chegaria lá viva e poderia comprazer-se ouvindo os disparates do amigo. Se morresse deixava de ser um encargo para a nossa dignidade.
Albino