Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Apografia 6: Santo da casa


Saí da rua de S. Miguel e corri, a razoável ritmo, até à placa que diz Eiras. Fiz alongamentos junto a uma loja chinesa, sob os protestos de um cão que, a cerca de cinquenta metros, felizmente amarrado a uma trela, ladrava e uivava o seu desprezo e a sua raiva face a humanos dados ao desporto. Eu vivia já, então, a alegria de uma história com final feliz que, por muitas horas, me parecera narrativa para acabar mal. Aqui fica o relato.

Desde a tarde de ontem que eu não sabia da minha carteira. Tinha lá algum dinheiro, cartões de débito e de crédito, cartão de cidadão, cartão de contribuinte, carta de condução - e dois ou três versos em estado de barro bruto (à espera de oleiro paciente que lhes desse forma). Vasculhei o meu carro, a minha casa, a casa de minha mãe. Fui a Cafés próximos, à estação de serviço habitual, à padaria da rua. Telefonei à polícia. Contactei até a um banco para saber de eventuais movimentos feitos por eventual ladroagem. Nada. Nada de nada. A carteira não aparecia.
A minha mãe endereçou a S. Gonçalo de Vila Nova uma reza que – garante – trata destes casos. Enquanto tal, eu repetia, sem cessar, a minha própria busca, cada vez com menos esperança: sob mesas, cadeiras, sofás, armários; no interior mais recôndito de todas as gavetas; nos quartos, no escritório, na despensa, na casa-de-banho. Subi e desci escadas como um Sísifo em modo automático.
Até que, dentro de uma maleta da M.P., encontrei uma fotografia do meu sogro, o Mestre João, madeirense falecido a 30 de Julho de 2010 e que foi, talvez, a mais sábia e mais justa das criaturas que já conheci. Lembrei-me do que, há anos, a V.L. nos confidenciara: que a memória do seu querido avô João (meu sogro), esse optimista alegre como um santo pós modernista, tinha poderes. E que fiz eu? Olhei para o rosto sereno da fotografia e murmurei: “Ajude-me, senhor João.”
A seguir, desci novamente as escadas e detive-me junto do aparador que fica no hall de entrada. Já me acontecera colocar a carteira sobre certos copos de cristal que aí esperam, em vão, por uso. Espreitei. Uma vez mais, não vislumbrei nem sinal do objecto perdido. Contudo, em lugar de desistir de olhar, optei por retirar, um a um, todos os copos da frente. Caída, no magro intervalo que havia entre a primeira e a segunda fila, lá encontrei a carteira.
Aliviado como passarinho que, in extremis, escapasse a um poço mortal, soltei uma expressão muito característica do Mestre João: “Basta que sim!”
E depois, claro, ainda lhe disse: “Obrigado.”

Coimbra, 07 de Agosto de 2013.

Joaquim Jorge Carvalho

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