Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Elogio da normalidade


Os alunos esvoaçam rua abaixo, puxando a tarde para a casa da noite, e toda a vila do Arco se embala, dolente, na normalidade que, feitas as contas, não é assim tão má. Apesar do frio, ouço à minha volta o concerto diário da alegria juvenil: gargalhadas como flores sonoras, gritos como espuma às cores, diminutivos como taxonomias de homens ainda pássaros.
Hoje não deixo que a cabeça se me parta a chorar as tristezas que há em o tempo estar passando (e de os meninos e meninas estarem devindo homens e mulheres, velhos e velhas, morte). Não deixo.
Durante esta tarde caindo, só me interessa a imortalidade que há por minutos na paisagem onde moro. Para mais, levo comigo pão quentinho para o jantar. Tenho, contra o irredutível Inverno, uma querida lareira. Contra o indisfarçável cansaço, a cama amável e o sono justo. Contra a imparável passagem das horas, este estar plenamente vivendo as horas.
Rua abaixo, deixo que me envolva ainda o concerto da normalidade alegre:
"O Manuel gosta da Cristina!"
"O Porto perdeu!"
"Telefona-lhe tu que eu não tenho saldo!"
"Amanhã levas!"

Arco de Baúlhe, 18h15m do dia 31 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.umtoqueempoesis.blogspot.com.]

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Duas senhoras à minha frente debilmente protestando contra o corte de energia por falta de pagamento


Formiguinhas subindo-descendo escadas, vozearia e silêncio (tudo em profundidade), reformados, desempregados & outros à espera de vez, um Cansaço maiúsculo consubstancial à tarde mínima. Está aqui, amigos, o meu país inteiro na Loja (assim chamada) do Cidadão. Talvez o próprio mundo. Eu bem leio para lá das senhas resignadas, das cadeiras ocupadas à vez, dos perfumes e suores transeuntes, dos esparsos lamentos, o significado maior deste desconforto geral que sinto, sentimos: défice de esperança.
A isto chegámos, contemporâneos.

Coimbra, 30 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.skyrapecity.com.]

Saudades de ser estudante


O amor dá corda aos passos
E a saudade acorda amores;
Das cordas se fazem laços
Nos laços moram as cores.

Os teus braços são dois laços
Os teus olhos são às cores -
Que saudades dos teus passos
E do tempo dos amores!

Meu amor, dá-me os teus braços
Vou contigo aonde fores.

Coimbra, 29 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de uma serenata coimbrã) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.dn.pt.]

domingo, 29 de janeiro de 2012

Sobre o Mar e sobre o Amor

Tão grande é o mar quando o olhamos E maior quando, não estando, o relembramos. 
 Coimbra, 29 de Janeiro de 2012. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem (Praia de Mira da minha infância e juventude) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.trekearth.com.]

sábado, 28 de janeiro de 2012

Contabilidade triste


Eis o orçamento dos dias-problemas
Enquanto não enfim chega o Verão:
Medos, frio, alguns poemas
E sonhos no coração.

Coimbra, 28 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

Quadra para aproveitar


Se apesar de imperfeita
A vida, amor, te seduz
Levanta-te e aproveita
Do sol a mínima luz.

Viagem entre Vila Real e Coimbra, 27 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (uma foto que gostava de ter sido eu a fazer) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruanafurtado.blogspot.com.]

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Parábola do desconsolo provisório


De vez em quando, há na minha vida de professor alguns pormenores que me salvam do desânimo, da desistência, do nada. Chamo-lhes momentos de consolação (um silêncio bonito no devir de uma leitura; um comentário simpático sobre certa aula certa; uma visita de ex-alunos apenas porque sim; um sorriso embrulhado nos bons dias, inaugurando-iluminando a manhã). Outras vezes, não há, em vinte e quatro horas funcionárias, isso. E, outras vezes, há o contrário disso. Hoje, por exemplo.
Depois de mil acrobacias pedagógicas, de uma ou duas ironias bem sucedidas, de alguns berros (talvez demasiados berros), de cinquenta interrupções forçadas, termino a aula de Francês e desejo bom fim-de-semana a todos. Um aluno (como dizer?) difícil suspira, então, à minha saída: "Aleluia!"
Notei bem na palavra o alívio que a minha partida provocou neste rapaz e, visto o desabafo pelo avesso, percebi o fardo que, durante quarenta e cinco minutos, fora para si.
Se eles soubessem o poder que têm! Se eles desconfiassem de quão facilmente podem destruir um fim-de-semana, uma carreira, uma vida!
Uma voz pergunta-me, cínica, já no caminho para Ribeira de Pena:
"Que andas tu para aqui a fazer, Joaquim Jorge?"
E eu mordo o lábio inferior e murmuro, não sem um íntimo estremecimento de remorso:
"Não sei. Talvez nada. Talvez ande só a cumprir o meu dever. Talvez ande só a pagar as minhas contas. Talvez esteja só à espera de um outro qualquer sítio para onde ir. Talvez seja um pássaro morto (no devir de formosos voos)."
Sabei, senhores, que a minha alegria foi hoje vítima de atropelamento e fuga. Está nos cuidados intensivos.
Pode ser que não morra. Acabei, há minutos, de corrigir 25 ditados de Francês. Amanhã ou domingo, preciso de preparar um teste de avaliação sobre a unidade "Faire des courses" e uma ficha formativa para Língua Portuguesa...


Ribeira de Pena, 27 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia em http://www.overmundo.com.]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Livro sendo


Cada dia, uma página do livro que vivemos, somos.
Anoitece. Final de página. Muito cansaço hoje.
Amanhã continuamos. Ou não, porque o sono é uma viagem perigosa, sem regresso garantido.
O livro (maior ou menor) faz-se. Mais ou menos penosamente, faz-se.
Que livro de nós ficará para outros lerem? Que importância terão as nossas páginas para os livros que outros, um por um, serão? Que livros-vidas se cruzaram, se cruzam com a minha própria existência alterando-se, alterando-me?
Grande consolo me acontece muitas vezes ao fim do dia. É quando olho para este livro de mim a escrever-se e vejo brilhar, no escuro do quarto, uma página limpa. Não vazia, atenção: uma página limpa.

Ribeira de Pena, 26 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://w.emsintese.com.]

Direito a levezas (síndrome do fim-de-semana)


Em contexto sério, vou contactando com expressões que enquadram, com rigor jurídico-documental, algumas disfunções da realidade: negligência, comportamentos desviantes, violência doméstica, abandono escolar...
Participo, como posso, na análise e discussão destes problemas. E não brinco (nunca brinco) em serviço.
Mas agora, no amável remanso deste Mar, ocorrem-me levezas de raciocínio que inocentemente debitarei:
a) Eu à sexta-feira piscando o olho, de alma cheia, ao fim-de-semana e sonhando outra profissão qualquer - será abandono escolar?
b) O agente de autoridade, de sobrolho carregado, anunciando a interrupção da estrada devido a obras e indicando-me a inevitabilidade de um percurso alternativo - será um comportamento desviante?
c) A subida de spreads e de juros para o crédito à habitação - será violência doméstica?
d) O mundo deficitário em matéria de alimentos, de paz, de justiça, de felicidade, de bom senso, de esperança - será negligência de Deus?
Amanhã é sexta-feira - eia, eia!

Ribeira de Pena, 26 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://soumaischataquetu.blogspot.com.]

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O tamanho da linguagem


O tamanho da linguagem mede-se por quanto queremos dizer e quanto do que dizemos chega ao entendimento e ao coração dos outros.
A grandeza da linguagem independe do número ou da pompa das palavras ditas, embora a riqueza vocabular importe. A grandeza da linguagem afere-se pelo alcance de sentidos que haja (possa haver) em cada enunciado dito ou escrito.
A linguagem é sempre música. Há nela sempre ritmo, melodia, frases, intérpretes, público fruidor, contexto, problemas, glórias, encantamento. E religião, claro, porque pela linguagem se busca o absoluto, a verdade.

Arco de Baúlhe, 25 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Saramago e Pilar que faz parte do documentário "José e Pilar") foi colhida, com a devida vénia, em http://www.abibliofila.blogspot.com.]

Olhos por mim, para mim


Aquele Deus omnipotente e omnipresente, da infinita bondade e da infinita sapiência - como serão os seus olhos? Isto é, como serão os olhos de Deus para tudo infinitamente verem (e para tudo, vendo, infinitamente sentirem)?
Sei da resposta: são os olhos cansados e tristes da minha Mãe. Isto é, os seus eternos olhos de sofrer tão fundo e amar tão alto.

Arco de Baúlhe, 25 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

Sobre a Palavra e sobre o Mal


Uma senhora com quem diariamente convivo no meu pacato local de trabalho dizia-me, ontem, a meio de certa conversa-café:
- O que importa é a palavra, senhor professor. A palavra vale mais que o dinheiro.
Estou muito de acordo com esta senhora. Até já escrevi um volume de poesia exactamente chamado "A Palavra Vale" e, no meu quotidiano pobre-rico (pobre em euros, rico em vidas), faço por não me desviar desse princípio.
Mas a verdade é que este modo de ver o mundo vai ficando obsoleto. Os corações humanos vão-se degradando em contacto com a modernidade fétida. Quando sobreviver prevalece sobre viver, ai, as pessoas tornam-se feras e matam (no sentido figurado e literal do verbo assassino).
Valeria a pena a muitos reler um livro fundamental que Primo Levi (um judeu sobrevivente do holocausto) escreveu. Intitula-se Se Isto é um Homem e nele encontramos uma perturbadora, mas realista, visão do Mal. O Mal consubstanciado em pequenos gestos, em pequenas histórias. O Mal como prática geral e aceite. O Mal ao alcance de todos - e todos ao alcance do Mal.
A palavra humana vale, sim, Dona Rosa, mas só se se der o caso de a humanidade não se demitir de ser humanidade.

Arco de Baúlhe, 25 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Primo Levi) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mauravoltarelli.wordpress.com.]

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Swift, Ferreira Leite e a Suprema Ironia


Fernando Pessoa defendeu, por escrito, a ideia (pouco agradável, convenhamos) de que o nosso Eça era um provinciano e de que o seu muito elogiado uso da ironia era pobre e falho de eficácia. Eu acho que o grande Pessoa estava, aqui, enganado. Mas, no mesmo texto, o poeta de Mensagem deu como exemplo da grande ironia, em literatura, um autor do século XVIII que tive a felicidade de estudar – Swift. E, céus, como (neste caso) acertou em cheio!
O texto que, segundo Fernando Pessoa, provava esta superioridade swiftiana em matéria de ironia é um extraordinário artigo intitulado “A Modest Proposal”, em que o irlandês sugere uma solução "perfeita" para a fome na Irlanda: a instituição do canibalismo entre os mais pobres. Tenho este texto em português, traduzido pelo desconcertante José Vilhena (esse mesmo, o da Gaiola Aberta).
Que se sustenta nesse enunciado? Isto: que dando-se o facto de as famílias economicamente menos privilegiadas terem, regra geral, proles numerosas, bastaria que alguns filhos fossem destinados ao alimento de cada clã (e eventualmente que se vendessem alguns excedentes, i.e., filhos que – ainda assim – sobrassem) para resolver todos os problemas de fome e economia.
A sugestão escandalizou naturalmente a sociedade da época e, ainda hoje, arrepia. Mas, como Pessoa explica, é obviamente aparente esta insensibilidade, este cinismo, esta crueldade. Embora Swift ilustre as suas “ideias” com contabilidade e argumentação rigorosas, a tese fundadora é de tal modo desrazoável que o texto acaba por se desautorizar a si próprio, constituindo afinal a mais eficaz e corrosiva maneira de falar do drama irlandês da fome da miséria. A não ser assim, como indirectamente sugere Pessoa, chamaríamos a Swift um verme indigno da condição de animal racional, um bruto desprovido de alma, um crápula.
Lembrei-me de Swift e de Pessoa quando li, em vários jornais, a afirmação de Manuela Ferreira Leite (produzida na televisão) sobre os idosos que necessitam de hemodiálise e que constituem uma despesa enorme para o Serviço Nacional de Saúde. A ex-deputada e ex-governante entende que estes doentes, se tiverem idade igual ou superior a 70 anos, não devem beneficiar de tratamento pago pelo SNS. A quererem tal, que paguem dos seus bolsos.
Ergueu-se um coro de críticas estuporadas e escandalizadas. Eu próprio, que tenho uma tão amada mãe com 73 anos espumei por minutos. Mas depois percebi que se trata do uso de ironia. Só pode tratar-se de ironia, tamanha é a (aparente) insensibilidade, o (aparente) cinismo, a (aparente) crueldade. A não ser assim, senhores, que chamaríamos a Manuela Ferreira Leite?

Ribeira de Pena, 24 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Swift) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tolanbaranduna.blogspot.com.]

Cartão de Cidadão (versão interior)


Sou este que porfia
Na funcionária lida
Por pão a cada dia
E amor por toda a vida.

Arco de Baúlhe, 23 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto MPC]

Noção de dilúvio ou inundação para neoliberais distraídos


Eles comem tudo e, depois, vão à missa ou à televisão mostrar a sua angústia com a situação do Estado ou a miséria dos pobrezinhos.
Eles recebem prémios de milhões de euros e, depois, vão às conferências explicar que o país vive acima das suas possibilidades.
Eles subsidiam os familiares com dinheiros públicos e, depois, escrevem nos jornais sobre a importância da austeridade e a necessidade de se defender a iniciativa privada.
Eles denunciam a insustentabilidade da caixa geral de aposentações e, depois, acumulam faraónicas reformas de governices e deputices.
Eles defendem Deus, ou o Profeta, ou Buda, e depois ajoelham-se perante uma alemã obesa.
Eles julgam que a paciência das pessoas é infinita e, depois, se Deus quiser, um brechtiano rio saltará as margens e talvez se arrependam.

PS: Em verdade vos digo, contemporâneos, que como os outros temo dilúvios a haver, mas os compreendo. Porque a humana paciência é naturalmente finita, e mesmo a de Deus se pode um dia esgotar. Noé?

Ribeira de Pena, 24 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem (do filme 2012, de Roland Emmerich)foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cinegnose.blogspot.com.]

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O mundo virtual


A internet, como a dinamite, foi uma invenção que supostamente concorreria para o bem da humanidade. No caso do ciberespaço, havia essa maravilhosa possibilidade da democratização do conhecimento, da aproximação de povos e indivíduos, da partilha de experiências. E muito desse sonho mundial veio, convenhamos, a concretizar-se. Mas um efeito perverso acompanhou este novo tempo (e por isso me ocorreu o paralelismo com a dinamite): as pessoas deixaram, em imensa escala, de contactar fisicamente com os outros. Como uma droga, o computador tornou-se sujeito tutelar das suas vidas e toda a existência foi resvalando para a dimensão virtual, tantas vezes máscara do que cada um verdadeiramente é, tantas vezes incompleta, tantas vezes mentirosa.
A mim, confesso, assusta-me sempre falar com "anónimos" (escrevo a palavra entre aspas porque ela, na gramática da internet, é muitas vezes uma assinatura, havendo pessoas que rubricam os seus desabafos com o termo "Anónimo").
Lembrei-me disto porque, de novo, fui à minha caixa de correio (a física, a que o carteiro utiliza para depositar - quase só - contas da luz, da água, dos seguros) e ela estava vazia. O Email substituiu as queridas cartas em papel que, hoje, quase ninguém escreve.
Não me parece inteiramente positiva a evolução, senhores. E nem me apetece falar de romances convertidos em páginas digitais que alguns anunciam por aí como a mais radical das maravilhas. Plantem-se as árvores que forem precisas - mas, por amor de Deus, que não se perca uma das mais belas invenções da espécie humana - o Livro!

Ribeira de Pena, 23 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.blogdokleberteixeira.com.]

domingo, 22 de janeiro de 2012

Anedota cínica


No peito do poeta lavrava o fogo formoso dos sonhos. Veio então uma senhora com um extintor e apagou tudo.
- Quem és tu? - perguntou, desconsolado, o poeta.
- Não me conheces? Sou a Realidade.

Ribeira de Pena, 22 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mhi.pt.]

sábado, 21 de janeiro de 2012

Isto e o essencial


Inaugura-se hoje um espaço-tempo pomposamente designado como "Guimarães capital europeia da cultura".
Sei das desconfianças que em muitos bons (e livres) espíritos estas iniciativas despertam. Sei das pequenas e grandes corrupções que, à boleia de eventos magnamente patrocinados, manhosamente florescem. Sei do cortejo de cunhas que antecipa e acompanha um evento destes. Sei dos perigos de nomeações espúrias, de mordomias obscenas e iníquas. Sei da confusão entre competência e militância partidária que nestas alturas tende a recrudescer, sobretudo no contexto generoso de muitos euros.
Mas queria aqui, hoje, falar de algo diferente. De Guimarães mesmo. De uma cidade bonita, cheia de gente dinâmica e genuinamente portuguesa. De um Portugal que existe fora de Lisboa. E de uma oportunidade vimaranense para, celebrando a cultura no presente, se cultivar - reparai no verbo - o hábito e o gosto de regularmente (naturalmente) ouvir boa música, assistir a bom teatro, ver dignas exposições de pintura, escultura, fotografia, admirar grandes bailarinos, beneficiar do brilho de sábias conferências.
Queria falar da oportunidade que aqui se inaugura de, passado e fruído o 2012 capital europeia coiso & tal, ficar algo novo e vivo em Guimarães em matéria de cultura e de vida cultural. Nas pessoas e pelas pessoas.
Queria, enfim, falar, aqui e hoje, do essencial que há, pode haver n'isto. E, à minha anónima medida, faço parte.

Ribeira de Pena, 21 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.portugalcultural.net.]

O que verdadeiramente importa


Coimbra, talvez 1989. Uma mãe assustada à porta de um hospital pediátrico, a filha febril, o pai estacionando o carro a trinta metros e logo regressando, correndo como se o mundo estivesse para acabar. O mundo a acabar. O casal jovem contando os tostões para aviar a receita na farmácia de serviço. A criança medicada, adormecendo sob o manto emudecido e nervoso deste ele e desta ela tão precocemente adultos. O sussurro quase aliviado de a menina (para sempre com esse nome - "a menina") já não ter febre.
O amor. O combustível eterno. O verdadeiro segredo da vida toda.
A menina ao telefone lamentando a conta do gás, mas assegurando que está bem.

Ribeira de Pena, 21 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho.
[Foto JJC]

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Poema por causa do Daniel que falou de um certo argentino, antigo ponta-de-lança do Sporting


Para o Sporting e a minha vida
É preciso mais, é preciso melhor:
Tanta oportunidade perdida
É uma dor d’alma, Senhor!

Eu queria, sei lá, a Não Morte
Algo genial, o Yazalde!...
Não mo dá o Fado nem a Sorte -
E eu sonho, debalde.

Arco de Baúlhe, 20 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Hector Yazalde) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mundobotafogo.blogspot.com.]

Fábula que deveio um enunciado sobre a temática habitual da vida e da morte


“Nasceu-me uma ruga”
(Disse a tartaruga
À porta de seu casebre).
“É do stresse” (disse a lebre).

“Não se diz” (continuou) “à toa
Que, ai, o tempo voa!”
E acrescentou ainda
Esta quadra mui linda:

“Tudo faço a toda a brida
(Amor, filhos e comer)
Por ser tão curta esta vida
Para tanto por fazer.”

Há em mim a tartaruga angustiada
E a lebre de existir urgentemente
Mas pouco sei que diga (quase nada)
Para consolar a mortal gente.

Eu cá o Futuro não desejo
(Dispenso-o de bom grado para mim)
E torno-me na vida caranguejo
Sábio recuando, recusando o Fim.

Arco de Baúlhe, 20 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.odistribuidor.com.]

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

História interminável


A mehor parte de ser professor é estar com os alunos, sobretudo na sala de aulas. Não sei se toda a gente concorda com isto, nem sequer sei se toda a gente percebe isto, mas tenho a certeza de que qualquer professor digno desse nome está comigo, n'isto.
No presente ano lectivo, no intervalo de muitas, tantas desilusões, tenho beneficiado de pequenos raios de sol que, interpretados com boa vontade, tornam gratificante o ofício multímodo da docência. Aqui vos falo de um.
Durante duas semanas, o meu 7.º C leu e analisou o conto O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Repartimos a leitura em voz alta por todos, incluindo o professor. Discutimos a história, os lugares da história (aliás, das histórias), os sentimentos e as emoções das personagens, o modo de narrar, o estilo da autora, até a própria ideia da viagem como maneira de entender o exercício da leitura.
Para o final da aula de quarta-feira estava guardada uma formosa surpresa: acabada a leitura da obra por um de nós, sobreveio um silêncio de nem bem dois segundos - e, depois, uma salva de palmas espontânea, alegre, demorada.
Um aluno resumiu tudo numa frase pouco cuidada (que na ocasião não pus em causa, confesso): "Muito fixe, professor!"
Falei-lhes, depois, mal disfarçando a felicidade que me visitara o coração, do milagre da leitura, que nos leva a lugares, a pessoas, a tempos tempos tão remotos e tão exóticos. E do facto de, a cada leitura (mesmo se o livro for o mesmo), inaugurarmos novas viagens, novos percursos, novos olhares.
Então, uma querida aluna disse que, nesse caso, uma história nunca chega verdadeiramente ao fim.
Sorri, satisfeito como um cavaleiro que regressa, depois de muitas aventuras, à sua casa. A casa da Narrativa. A casa da Literatura.
- Pois não. Nunca chega. Nunca acaba.

Ribeira de Pena, 19 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Flor & Dor


Amor como flor no deserto cresce
Da míníma água se nutrindo, lindo
E se às vezes morre é de estar sentindo
A dor que, fera, no amor floresce.

Cabeceiras de Basto (hora d'almoço), 18 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (do filme O Paciente Inglês) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.casadecha.wordpress.com.]

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Idade de cima


Talvez todas as idades sejam promontórios. Do alto do nosso tempo, vê-se o mundo (pelo menos, o que há e o que houve).
A caminho dos cinquenta, cada vez mais este miradouro onde ponho os pés se parece com o último degrau antes da queda. Isto é, cada vez mais a realidade se me vai tornando um abismo que se vê de longe, se vê de cima. E que urge evitar.
Passe-me os binóculos, senhor Freud. Sim, eu tenho cuidado. É só para ver o que se passa.


Ribeira de Pena, 17 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ideiasemdesalinho.blogs.sapo.pt.]

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Quadra de bem ver


Há óculos de ver ao perto
Outros há p'ra longe disto
Mas, para ver bem, o certo
É ver por dentro do visto.

Ribeira de Pena, 16 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.amigosdobotanico.blogspot.com.]

O mistério dos sonhos


Sonhos de novo.
Por várias horas, esteve o meu cérebro ocupado com arrumações: livros, papéis, sapatos, candeeiros, produtos de higiene, material de escritório, ferramenta avulsa, chaves, louça, fotografias, tomadas, extensões para tomadas, lâmpadas. Consigo recordar que se tratava da minha garagem-escritório em Coimbra, mas igualmente me apareceram lapsos da sala de professores de Ribeira de Pena e do Arco.
É à volta do meio-dia que me visto de auto-Freud e tudo se me afigura uma pulsão de viagem e/ou de despedida. À revelia de mim, segundo parece, o meu cérebro revolta-se e sugere (senão anuncia) mudanças.
Tive entretanto tempo para voltar à reflexão. Hipótese segunda: pode tudo também dever-se a esta minha obsessiva necessidade de combater o caos, de perseguir uma ideia (a ideia) de ordem, de cósmica perfeição.
Os sonhos são um mistério quase doloroso e toda a vida me perturbaram. De alguns recordo só farrapos, cenas, emoções, a maior parte das vezes como se acordando voltasse para o lado de cá de uma questão maior por resolver.
De que planeta distante, em nós, vêm os sonhos? Quanto de nós dirão que, acordados, não somos capazes de alcançar? (Divinos hão-de decerto ser porque Deus é, na linguagem humana, um hiperónimo de todos os sonhos. Isto é, o que se vê e o mais que, não podendo deixar de existir, incompletamente percebemos.)
Fecho o caderno e vou corrigir trabalhos de Francês. Sirva a rotina para dar descanso ao cérebro. Agora, em vez de estar sonhando, há apenas frio na vila da minha escrita.

Ribeira de Pena, 16 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.blogsopramulheres.blogspot.com. Fui “lá” buscá-la, apesar do aviso.]

domingo, 15 de janeiro de 2012

Quintilha domingueira


Viemos à cidade apesar da neve
Ver o Sporting na televisão
E é sempre tão feliz, porém tão breve
Esta eternidade limpa e leve
De andarmos por domingo mão na mão.

Vila Real, 15 de Janeiro de 2012 (Braga, 2 – Querido Sporting, 1).
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Dolce Vita Douro) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.efacec.pt.]

Sonho viajante


Sonhei com família, amigos, conhecidos, todos juntos na casa de minha mãe. Eu, sei lá porquê, aparecia com peixe fresco, havia uma algazarra de comentários e de sugestões para o almoço, a minha tia Belinha começava a lavar carapaus, raias, polvos, e o meu irmão Nelo, ainda petiz, queria água mas ninguém o ouvia.
Normalmente, esqueço-me dos enredos que há nos sonhos. Desta vez, não. O almoço terminava com a notícia de que eu me iria embora para longe e com os presentes discursando, um a um, as despedidas. Cada fala trazia um abraço comovente, a que eu respondia sempre com estúpidas piadas que à minha mãe, chorosa, escandalizavam.
Depois, eu afastava-me num táxi e, pelo vidro traseiro, ainda via as pessoas amadas (algumas já mortas, fora do sonho) dizendo adeus.
O mais misterioso deste devaneio onírico foi, no final, eu estar num lugar completamente estranho, afinal, como logo a seguir percebi, num outro tempo: a Idade Média. Um homem velho, com uma enxada na mão, aproximou-se e perguntou:
- Qui êtes-vous?
Eu acordei a gritar (ou julgando que gritava):
- Eu não sou daqui! Je viens d’un autre temps! Perdu, vous comprenez?

Ribeira de Pena, 15 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.hid0141.blogspot.com.]

sábado, 14 de janeiro de 2012

Condicional


In memoriam C. P.


Se eu pudesse desligar este relógio da minha cabeça
E em vez da vertigem circular dos ponteiros houvesse
Uma praia com areia pessoas peixes búzios mar!
Se eu pudesse fugir desta prisão que é não ter asas
E sonhar com voos para longe de estar preso!
Se eu pudesse sair desta férrea tristeza sem sol
E acrescentar ao estar esperando alguma esperança!
Se os dias fossem menos pesados menos brutos!
Se eu pudesse demitir-me das cãs dos cães do caos
E andar pela vida como um turista pássaro
Fotocantando o mundo fotoamando a luz!
Se eu fosse o Alberto Caeiro da minha própria existência!
Se eu fosse livre antes da morte em vez da morte!
Se houvesse luz em vez de EDP!
Se as águas portuguesas se libertassem das Águas de Portugal!
Se houvesse um Estado de Bem que nos desse bem-estar!
Se um verso enfim inteiro me dissesse e voasse
Para fora do grandiloquente planeta da Vulgaridade!
Se o silêncio ou a música me abrigassem
Me dissessem Senta-te e Escuta!
Se algo algures diferente da vida mas não a morte
Me abrisse a porta e dissesse Entra!
Se uma coisa nova se me inaugurasse enfim
E a rua onde estou fosse para sempre
Rua para completamente estar rua para ser!
Se eu fosse Eu ao sereno sol de Mira ou de Machico!

Ribeira de Pena, 14 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (vislumbre da Praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.flickr.com.]

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Clara Amiga


Recebi um email do meu colega e amigo Paulo Correia de Melo dizendo o seguinte:

"Amigos,
Cumpro o doloroso dever de vos comunicar que faleceu a nossa colega/ amiga Clara Póvoa. O funeral realiza-se amanhã, sábado, às 15 horas, a partir da Igreja matriz de Cantanhede.
Paulo Correia de Melo"

A Clara Póvoa era uma das mais distintas pessoas que me foi dado conhecer ao longo de quase trinta anos de profissão: competente, dedicada, profissional, simpática, normalmente de bem com a vida.
Mesmo depois de ter saído da Escola Secundária de Cantanhede, mantive - em grande parte, por ela - contacto com colegas, alunos e funcionários desse espaço exemplar da Educação Pública.
O facto de a Clara ser responsável pela Biblioteca contribuiu para que, durante estes últimos dez-quinze anos, reforçássemos laços e cumplicidades. Ela era amiga dos livros, dos alunos e dos colegas, da Escola e da Vida. Minha amiga.
Vou (vamos todos) ter muitas saudades desta inesquecível Mulher que tinha no nome uma espécie de marca d'água do seu carácter limpo e lindo: Clara.
Adeus, tão querida Amiga!

Arco de Baúlhe, 13 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Grau abaixo de Zero


Soube-se agora: vários nomes obviamente associados ao arco (político-partidário) do governo foram "nomeados" para a administração da EDP.
O senhor primeiro-minstro já disse que se tratava de coincidência e que o seu governo não meteu prego nem estopa nas escolhas.
O povo não acredita (chinesices de gente pobre).
Vale contudo a pena referir que o salário de Sua Excelência Eduardo Catroga vai andar à volta dos 650 mil Euros anuais, valor que acumulará, sem remorsos, com uma pensão de cerca de dez mil Euros mensais.
A questão é que este foi um dos senhores que, alto e bom som, lembrou ao povo que era preciso fazer sacrifícios para salvar o país. Que terão a dizer, sobre o assunto, os desempregados portugueses? Ou os cidadãos que não conseguem fazer face aos aumentos de medicamentos e taxas moderadoras, rendas de casa, portagens?
Assistimos, senhores, à morte do chamado "grau zero" da vergonha. Abaixo desse limiar há uma coisa a que, à falta de outro termo publicável, chamarei Nojo.
A nossa modernidade é isso: um Nojo.

Ribeira de Pena, 12 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.makejetomosso.wordpress.com.]

Metáfora óbvia


O mundo (repito repito repito) é metáfora do mundo.
O clima, por exemplo. Este clima. Um frio que invade tudo, todos. O vento soprando como bofetadas. O cão do Inverno mordendo pele, ossos, sangue.
Caracolizamo-nos. Regressamos, pelo tempo que for possível, à casca protectora. Defendemo-nos. Hibernamos moderadamente.
E vamos ansiando pelo sol. Vamos fazendo contas até ao Verão.
Olhai que este clima, lido bem, é mais que este clima. É o monte Calvário da nossa circunstância. Nossa, isto é, de nós individualmente ou como família. Ou como povo.
Este clima, este frio, este défice de sol.

Ribeira de Pena, 12 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sylvie-stuff.blogspot.com.]

Malhas que a noite tece


Anoitece mansamente pelas seis da tarde.
Vejo a luz dissolvendo-se em noite, em nada.
Pouco a pouco, candeeiros públicos começam a funcionar e, nos lares que o olhar alcança, acendem-se outras luzes. Luzes, digo, daquelas adivinhadamente impregnadas do secreto aconchego que sempre haverá no âmago milenar das casas.
Tenho saudades de voltar para a minha casa de há trinta e cinco anos, no ocaso do dia, viajando de eléctrico ou de trolley, de autocarro (número 2 – Pedrulha).
A luz da cozinha trazia a Mãe à porta e havia a televisão ligada, o odor a sopa nova (talvez caldo verde), o barulho de crianças na velha ladeira entre a rua e o pátio.
Talvez a minha filha haja passado, também, por este país tranquilo e amável – e eu próprio tivesse sido para si parte do encanto que era ela chegar a casa.
Hoje em dia, eu e a MP estamos, as mais das vezes, incompletos. A VL saiu do berço e nós ficámos atordoados como decerto ficam as andorinhas em final de Verão. Que fazer aos olhos, às mãos, ao tempo?
A distância entre nós e os que amamos é um mar muito triste e, por vezes, corrosivo. (O telemóvel é, nesta contemporaneidade tão delicada, uma espécie de bóia que nos salva de dar em doidos!)
Anoitece mansamente pelas seis horas da tarde.

Cabeceiras de Basto, 10 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.flickr.com.]

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Riso às vezes


Ando tristemente pela estrada
No colo chaplinesco da Beleza.
Às vezes solto alguma gargalhada
Mas tal, até em mim, é uma surpresa -

Porque é sobretudo o estar triste
A minha verdadeira natureza
E o meu riso, escuta, se o viste
É uma frágil forma de defesa:

Por ser pesada a vida e o juízo
Sobre o meu futuro sem fulgor
Eu rio-me por vezes, mas o riso
É uma frágil folga para a Dor.

Arco de Baúlhe, 11 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.allposters.pt.]

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Variação sobre verso de Eugénio


"O desejo, esse cão, deixou de me ladrar à porta"
(Eugénio de Andrade)


Perdoai a ausência de antigos furores
E o sono intermitente do desejo -
Ao Tempo não escapam os amores
E, vista a nova idade como a vejo,
Em vez de muitos beijos num só beijo
Pode haver a cor de outras mil cores.

Ribeira de Pena, 09 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Eugénio de Andrade por Emerenciano) foi colhida, com a devida vénia, em http://jq.weblog.com.]

Explicação muito adverbial da Paciência


Estoicamente sobrevivemos ao Inverno
Espreitando as mínimas migalhas de luz.
Mansamente recebemos o frio
E dignamente aceitamos o haver apenas o que há
Antes do Verão que juntos veremos (verás).

Delicadamente levo a tua mão à boca
E beijo-te os dedos como se já o sol chegasse
Depois segredo-te um verso indecente sobre o desejo
E atiço a lareira cúmplice da nossa espera.

Estoicamente estamos (somos o que estamos)
Mansamente hibernamos, contudo resistindo
Dignamente expiamos o Verão anterior.

Pela janela, para lá de longe, há o Porvir
(Não te admires, Senhora, por eu sorrir) -

Não obstante as rugas e os cansaços
Ao Verão, amor, ainda chegaremos
Quero dizer, amor, ainda voltaremos
À praia que mereça os nossos passos.

Ribeira de Pena, 09 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (pintura de Monet) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.livre-e-humano.blogspot.com.]

domingo, 8 de janeiro de 2012

A lógica dos mercados


A lógica que presidiu à introdução de portagens nas ex-scut é, em boa verdade, a mesma que determina a subida de taxas moderadoras nos hospitais e centros de saúde (e outros fenómenos semehantes).
No caso das ex-scut, os pregadores neoliberais defendem esse divinizado princípio do "utilizador-pagador". Tretas! O que acontece é as boas estradas serem, afinal, para quem tem dinheiro para as pagar. Para "os outros" (a plebe sem recursos económicos), restam as estradas menos rápidas, menos modernas, menos seguras. Já os antigos diziam: "Quem não tem dinheiro não tem vícios."
Portugal (ou o melhor de Portugal) não é, como se vê, para pobres.

Ribeira de Pena, 08 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.altamiroborges.blogspot.com.]

sábado, 7 de janeiro de 2012

TDT: a portuguesa falta de decoro


Com a cumplicidade (muitas vezes sob a forma de envergonhado silêncio) de gente importante, está em curso uma das maiores vigarices de que a sociedade portuguesa tem sido vítima. Falo da TDT (Televisão Digital Terrestre). É bom que se reflicta um pouco sobre o assunto.
Uma certa patine de indiferença parece acompanhar a ténue discussão. Creio que tal se deve, em grande parte, à circunstância de os opinion makers da lusa paróquia consumirem tv por cabo e de, por isso, não sentirem na pele o problema.
O que se pretende é que muitos portugueses comprem os dispositivos necessários à TDT, sem o que pura e simplesmente perderão o direito (até aqui tido por adquirido) de ver os canais generalistas.
Para além da vergonhosa chantagem que se faz sobre os pobres consumidores de televisão, há este inelutável facto: senhores importantes querem que a plebe pague para patrocinar a mudança decidida pelos ditos senhores importantes.
Acresce que as condições de acesso à TDT não custam o mesmo em todas as regiões de Portugal!
Perceba-se: esta mudança da analógica para a digital terrestre deveria ser paga pelos próprios operadores e pelo Estado (que, através das facturas da EDP, recolhe não despicienda quantia para a televisão pública).
Em boa verdade, os principais prejudicados com a eventual não adesão do público à compra do dispositivo seriam os próprios canais de televisão. A sacrossanta publicidade precisa de público potencial e as televisões precisam da sacrossanta publicidade.
Trata-se de um negócio de milhões. Para milhares de humildes cidadãos, é logo à partida um negócio de perder. Para meia dúzia de espertalhões, é mais uma "janela de oportunidade".
Não tem faltado só bom senso neste processo. Tem faltado decoro.

Ribeira de Pena, 07 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:www.dinheirovivo.pt.]

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poema de ir andando


A cada manhã enfrento, no viver, a dor
De o temido futuro se me fazer presente.
Mas um pouco de sol me basta, amor
Para acreditar, para ser contente.

Arco de Baúlhe (intervalo para almoço), 06 de Janeiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ecosdebasto.com.]

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Decorar poesia


Por imposição do encenador, alunos de Teatro decoraram poemas de Ruy Belo, Ramos Rosa, Sophia Andresen, Florbela Espanca, Pessoa, Camões. Ouço-os e consola-me a ideia de, por instantes, aqueles filhos de operários-desempregados-administrativos-professores-agricultores-empreiteiros-etc. conviverem, divinamente, com os maiores nomes da nossa língua. Pela sua voz de meninos e meninas, aqueles grandes autores renascem do silêncio a que a Brutidade diária os vai reduzindo, nos vai reduzindo.
Não sinto quaisquer remorsos por esta imposição de encenador. A memória (a física e a simbólica) também se realiza e treina deste modo.
E o direito à literatura faz parte, em meu entender, do direito à cultura e à liberdade.

Ribeira de Pena, 05 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.makeitabetterplaceforus.blogspot.com.]

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Eternidade é um planeta dentro do coração


Tenho sete anos e driblo, no campo de recreio da Escola do Casal Ferrão, mil colegas, uma árvore, o Tempo. A Dona Angélica vem à porta da sala do rés-do-chão e ordena-nos o regresso à aula. Voltamos ofegantes, com uma ou outra bata suja de erva ou de terra, os sapatos gloriosamente feridos de remates na bola ou no chão. Lá dentro há geografia, aritmética, ditados e histórias em língua portuguesa. O Jaime gosta da Manuela João, a Manuela João gosta de mim, eu gosto da Beatriz, a Beatriz tem olhos azuis e é a mehor amiga da Manuela João. À noite, dá um jogo do Sporting na rádio a contar para a Taça Uefa. Antes de adormecer, tenho de fazer uma cópia que começa assim: "Portugal é grande."
Na manhã seguinte, o dia começa com música radiofónica, cheiro a café com leite e a pão torrado, o meu pai cantando "Não venhas tarde", o cão atrapalhando a nossa pressa, a casa cheia da quotidiana azáfama que não se interromperá senão no sábado.
No próximo sábado vamos a Leiria ver o União de cá contra a União de lá. A tia de Leiria oferece-nos almoço e o tio Zé Melo já pediu dispensa do trabalho para nos acompanhar.
Tenho sete anos e, por esta altura, a eternidade existe. É um planeta meu.

Ribeira de Pena, 04 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.forumcoimbra.com.]

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Triunfo dos tais


Cumprindo o seu Plano Nacional de Leitura, os meus alunos terminaram hoje a leitura integral da primeira obra do ano lectivo de 2011-2012: O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, romance concluído em 1943. Sabe-se que o autor tinha em mente, sobretudo, as perversões do estalinismo, um ismo vendido pelo marketing soviético como Felicidace maiúscula, mas que veio afinal a ser (mais) uma indignidade dos homens contra os homens. A revisitação do texto, em voz alta, trouxe-me novas (e actualizadas) analogias que ora me atrevo, neste cantinho de liberdade que é o "Muito Mar", a partilhar convosco.
Tomai, por exemplo, este excerto, que reporta a avaliação de alguns humanos, em visita à Quinta onde, para além de não haver liberdade, os trabalhadores vivem cada vez pior e são obrigados a trabalhar cada vez mais. O senhor Pilkington, em discurso indirecto livre, verbaliza a opinião geral(Cf. George Orwell, O Triunfo dos Porcos, trad. de Madalena Esteves, Lisboa, Publicações Europa-América, 2005, pp.121-122.):
Hoje, ele e os seus amigos tinham visitado a Quinta dos Animais e inspeccionado cada centímetro dela com os seus próprios olhos. E o que é que tinham encontrado? Não só os mais modernos métodos, mas uma disciplina e uma ordem que deveriam servir de exemplo a todos os agricultores em toda a parte. Acreditava estar certo ao afirmar que os animais inferiores da Quinta dos Animais trabalhavam mais e recebiam menos comida do que qualquer outro animal da região. Na verdade, ele e os outros visitantes tinham observado ali muitas medidas que tencionavam introduzir imediatamente nas suas próprias quintas.


Escuso de esmiuçar exegeticamente o texto, tão cristalina é a sua mensagem tro(i)kada por contextos d'hoje. Mas não resisto a recordar parte do último capítulo, justificadamente célebre e recorrentemente recordado (cf. ob. cit., p. 124):
Não havia agora dúvidas sobre o que estava a acontecer às caras dos porcos. Os animais que estavam lá fora olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos e novamente dos porcos para os homens; mas já não era possível dizer quem era quem.


Irmãos, agora nós: quem é quem?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Coimbra (fading out)


E agora, homem, que hás-de fazer
Senão continuar
Senão meter o pescoço no jogo diário
Das carroças dos outros
E puxar fazer pela vida?
[Fazer pela vida é andar pelo mar a adiar as ondas.]

E agora, ó escravo, que dirás
Sobre o programado
Senão a versão funcionária da tutela
Que te utili(mini)miza
E te vai pagando as contas?
[A tutela é uma tela em que tu és uma sílaba a mais.]

E agora, Joaquim, que quererás dos dias
Senão os restos
Senão a tarde-noite dos silêncios
E um quarto a fingir de praia
Ou a mão do amor interrompendo o caos?
[O caos é este muro sujo entre mim e a poesia.]

Coimbra, 02 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto VLOSC (com recurso a temporizador).]

domingo, 1 de janeiro de 2012

Sabor com sol dentro


"Já viste a quantidade de sol que há dentro de uma laranja?" (Bernardo Santareno, Restos.)
Estive muito doente durante quatro dias. Virose lhe chamou a médica que me atendeu, ao segundo dia de sofrimento. Com a medicação não se resolveu logo o assunto porque, por um lado, perco absolutamente o apetite e, por outro, o meu frágil organismo não suporta comprimidos sem se encontrar devidamente alimentado. À febre, ao frio, às horríveis dores de estômago, à quase vontade de morrer - sucedeu finalmente a espantosa ressurreição de mim inteiro: com forças para me levantar, com ganas de rir, com vontade - enfim - de comer.
Aconteceu-me, durante o tempo da tortura, ter desejos talvez comparáveis aos das mulheres grávidas. Apeteceu-me, por exemplo, sumo de ananás ou laranja, chocolate, alguns frutos (cozidos ou crus). Deixai-me destacar a clementina.
Num intervalo do meu silêncio sofrido, pedi à MP isso mesmo: uma clementina. Ela desaconselhou-me a ideia. Expliquei-lhe que era apenas para ter, durante alguns segundos, um pouco desse sumo maravilhoso entre os lábios. Ela concedeu. E, durante uma inteira noite, eu beneficiei da vizinhança de uma clementina, ali sobre a mesa-de-cabeceira, como um sol saudável iluminando e aconchegando a minha fragilidade mortal.
Quando melhorei, enfim, devorei-a. E é esse momento divino (no sentido verdadeiramente religioso de "divino") que justifica esta crónica, a primeira de 2012. Tão fácil se torna perceber, na euforia do regresso ao mundo dos vivos, que os maiores prazeres podem ser simples e naturais. Enquanto o corpo e o sumo do fruto me invadiam boca, garganta, sangue, ocorreu-me que da vida deve apetecer-nos, essencialmente, que tenha o sabor luminoso da clementina.

PS: O meu sogro, Mestre João, faria hoje 80 anos, se fosse vivo. Esta crónica é-lhe (mais uma vez) dedicada.

Coimbra, 01 de Janeiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ervanariasaudenatural.blogspot.com.]