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Número de Ondas

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Quadra talvez excessivamente pessimista


Como os filhos, os sobrinhos vão
Perdendo de si o ser criança
Roubados pelo Tempo, esse cabrão
Que leva, antes da vida, a esperança.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Carrocel Mágico


O "Carrocel Mágico" nasceu, como eu, em 1963. Coleccionei bonecos desta série que vinham com os gelados da Olá e, num silêncio do outro mundo, acompanhei as histórias oferecidas pela televisão a preto e branco. O que me afiligia mais, pensando bem, a cada nova viagem espectadora, era saber que aquele prazer expiraria daí a minutos.
Também me aconteceu andar eu próprio, como os bonecos da Olá, num carrocel: na Pedrulha, no Choupalinho, em Celas. O mesmo fenómeno, ai de mim, se produzia então: a volúpia era-me incomodada pela noção do fim iminente da volúpia.
Pela vida fora, até aqui, nunca o carrocel de existir se me tornou menos trágico, ainda que sempre reconhecidamente lindo. Coimbra, por exemplo. Quanto falta para nos interrompermos a cumplicidade e a presença d'Agora?
A felicidade é uma breve, avulsa viagem no carrocel mágico. Nenhuma viagem dura para sempre, por muito linda que seja a viagem. A mim, passageiro com um relógio encostado ao coração, isto dói.

Coimbra, 27 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Eu d'Então


Com a cidade de Coimbra, dá-se comigo o mesmo que ao entrar em casa da minha mãe, quando revisito o quarto onde, por cerca de vinte anos, li, dormi, sonhei.
É uma espécie de encontro com outras formas de eu que, ao longo do Senhor Tempo, tenho sido, sou.
Hoje, durante a corrida no Choupal, cruzo-me com um rapaz magro e a rebentar de futuro, que joga no União de Coimbra, anda apaixonado pela miúda mais linda e que leva na cabeça a ideia de um poema mortinho por ser escrito (ou uma história mortinha por ser contada). Sou aquele, fui aquele.
Não nos cumprimentamos. Eu interrompo a corrida para recuperar o fôlego e para o ver afastar-se de mim, rumo (penso) a outro País. De comum, Joaquim Jorge d'Então, temos hoje só, talvez, a ideia na cabeça de uma história mortinha por ser contada. Aliás, volto mais logo a essa escrita que quer ser escrita.

Coimbra, 26 de Fevereiro de 2011,
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (com esta luz tão linda) foi colhida, com a devida vénia, em http://sweet.ua.pt.]

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Recado para gente que diz "o filme que eu gosto mais é..."


António Vieira

O céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

(Fernando Pessoa, Mensagem)




1. Há gramática nos gestos nossos de cada dia: cumprimentos, recados, reuniões, conselhos, notícias de terramotos incontinentais, opinião sobre o Sporting ou sobre a assembleia da república, expressão de amor ao café, nota sobre um grupo musical (islandês) que o Nuno conhece, reconto de uma anedota politicamente inadmissível, anúncio de actividades carnavalescas, memória de canções dos anos 70/XX, glorificação da costura habilidosa e diligentíssima da D. Rosa Maria.
2. A língua portuguesa existe naturalmente, mas não apenas porque a falamos. Sobrevive sobretudo porque a utilizamos bem, isto é, com clareza, correcção & elegância. Isso de a língua ser uma "coisa viva" [sic], logo, reformulável a cada passo, anda a tornar-se um clichê perigoso no verbo modernaço de maus falantes. A língua portuguesa tem resistido porque, melhor ou pior, a temos defendido ao longo de décadas, séculos.
3. A evolução não significa desistir da norma em favor da bruta facilidade. Com os maus falantes, o tratamento devido é, em primeiro lugar, dar o exemplo, respeitando as regras da pronúncia, da sintaxe, da propriedade e clareza linguísticas. Depois, é não desistir de corrigir, explicar, ensinar. Finalmente, é chamar erro ao erro, falha à falha, crime ao crime.
4. "Ó s'tor, isso não tem importância"? Ora, ora. Antes aborrecido que cúmplice, meus amigos. Quando era pequenina, a minha filha fez-me muitos pedidos que, deliberadamente, deixei por satisfazer. Fi-lo, como ela hoje sabe, pelo bem dela (que, já então, era o meu também). A minha mãe, quando algum filhote a inundava de lágrimas (por um passeio não cumprido, uma brincadeira interrompida, uma ordem antipática relacionada com horários, alimentação, higiene, etc.), costumava dizer:
- Antes chores tu que eu...
5. Tomai dela essa sabedoria para falarmos de língua e da gramática que vale a pena defender: antes chorem os preguiçosos, fartos das nossas ladainhas correctoras, que chore a Língua.

Ribeira de Pena, 24 de Fevereiro de 2011
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (representando o Padre António Vieira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.becre.esct.blogspot.com]

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Lição elementar sobre a felicidade


Barco navegando entre mundos
Já saudade
Do chão de si próprio, movediço;
Sermos, termos tudo por segundos -

A felicidade
É isso.


Ribeira de Pena, 23 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC, 2007.]

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Centrão unido, naturalmente




"No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada..."

(Zeca Afonso, "Os Vampiros", 1987.)



Não é a primeira vez que me acontece. Tenho na cabeça uma ideia para desenvolver sob a forma de crónica e, aos primeiros olhares sobre o JN, percebo que o indispensável Manuel António Pina já disse o que eu pretendia dizer. Ao invés de me aborrecer, isso consola-me: não é mau destino andar pelo fuso ético de um grande poeta e de um grande cronista.
Lembro, de qualquer modo, o facto político que veio incomodar, nestes últimos dias, o centrão português, esse território hipócrita e obeso da nosssa contemporaneidade democrática: Bloco de Esquerda, PCP e CDS queriam que a Asssembleia da República estabelecesse limites aos vencimentos obscenos da administração pública (pautando essa fronteira pelo ordenado do presidente da República). O PS e o PSD - ó surpresa das surpresas! - recusaram-se a tal. Desta feita, até Marcelo Rebelo de Sousa reconheceu, para escândalo e vergonha da cambada do centro, que só a confluência de interesses e clientelas impediu a assunção desta medida higiénica. E, adivinha-se, boys e girls laranjas e cor-de-rosa suspiraram, aliviados, decerto gratos.
Confirma-se, assim, o que já há muito se percebia: as diferenças entre PS e PSD são muito poucas, senão nulas. E ou esses partidos mudam, de dentro, ou a alternativa (pacífica, democrática) a este presente indecoroso está só à sua esquerda ou à sua direita.
Um voto, hoje, no PSD ou no PS (versão socrática) é um voto de resignação, de desistência ou de mera defesa de pontuais interesses. Só fazendo muito, muito,muito de conta, é que não se vê isto.
Estou longe de ser um militante de Bloco, PCP ou CDS, mas a verdade é esta: o centrão anda a conferir a estas periferias um espaço central que, até a elas próprias, pareceria há pouco tempo insuspeitável.
Depois, queixem-se.

Ribeira de Pena, 22 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A melancolia perfeitamente dita


Às vezes, tropeçamos num rosto, num gesto, num filme, numa notícia, numa paisagem, numa melodia, numa voz, nuns olhos, num pedaço de texto – e algum fenómeno estranho e grato se produz. Ainda que por instantíssimo tempo, pode acontecer que o sol nos visite por dentro e o presente se una ao passado e ao futuro. Isto é, que o cosmos exista.
Refraseando: a verdade inteira pode caber, por exemplo, num único verso.
É tão grande a felicidade, então, de estarmos lendo o céu, residindo nele enquanto nos apropriamos da sua luz reveladora, que se torna irresistível repeti-lo. Dizê-lo muitas vezes. Partilhá-lo.
Ultimamente, tenho experimentado estas epifanias, sobretudo, na literatura de Ruy Belo, Manuel António Pina, Daniel Abrunheiro, Jorge Sousa Braga, Sophia, Paul Célan …
Mas, neste momento, tenho a brilhar-me por dentro de cabeça e alma, uma perfeição pequenina escrita por Ana Marques Gastão. Ofereço-vo-la:

"Melancolia
- nostalgia de Deus."

À noite, olhando as estrelas, vejam bem se não há por lá versos destes iluminando-nos para sempre.

Ribeira de Pena, 21 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.storm-magazine.com.]

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Encalhadas, no Teatro Vila Real


Assisti, com a MP, no Teatro de Vila Real, ao espectáculo Encalhadas (original de Isabel Sicsci e Miriam Palma, adaptação de Ana Bola, encenação de Heitor Lourenço), com as conhecida actrizes Maria João Abreu, Rita Salema e Helena Isabel.
O texto é medíocre, a estrutura do espectáculo tem algo de revista pobre, abundam os clichês, pontuam piadas gastas e innuendos óbvios.
De agradável, ficou a confirmação de um edifício lindíssimo e muitísimo confortável, ali no coração de Trás-os-Montes, e também o ter estado próximo - por uma hora e quarenta e cinco minutos - de três actrizes honestas e talentosas (com relevo para Maria João Abreu e Rita Salema).
Não demos por perdidos os Euros nem o tempo investidos. A comunhão que o Teatro é, afinal, depende menos do texto que da gente reunida, i.e., actores e público. É desse milagre do encontro que resulta o essencial de um espectáculo. E "isso", apesar de tudo, aconteceu no dia 18 de Fevereiro, entre as 22h e as 23h45m.

Ribeira de Pena, 20 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Olhar Mercador (Zona de Perecíveis 6)


O meu olhar amanheceu ordinário e vai comigo
Até ao hipermercado habitual, despudorado
E atento como felino à cata de refeição.

É o tempo dos melões e o meu olhar mal se esconde
Da balzaquiana de vestido leve e carnes duras
À roda da fruta.

A mulher debruça-se sob o meu olhar e sopesa
Acaricia, cheira, apalpa, aprecia melões
(melões verdes, brancos, rosados, amarelos)
Como quem não pode escolher senão o fruto certo.

Por mim, por meu olhar, é já escolhido
Sob o decote amado do que vejo:
Dois mundos à entrada do vestido
Rindo-se de mim, do meu desejo.

Ribeira de Pena, 20 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007. A imagem (“Madame Bovary”) foi colhida, com a devida vénia, em http://3bp.blogspot.com.]

Viúvo & Fruta (Zona de Perecíveis 5)


Um velho viúvo aprecia demoradamente a fruta
Como se aquele momento fosse a última oportunidade
De uma maçã boa.
Quem sabe a quantidade de linguagem por dentro dele?
Quantos nomes, lugares, dias à roda do gesto adiado?
Ele recolhe uma certa maçã caída sobre laranjas
E cheira-a
Eventualmente íntimo da glucose potencial do fruto
Ou da memória geográfica da árvore mãe.
Talvez o viúvo tenha poucos dentes e coza esta maçã
Com água e açúcar
(e talvez a sua solidão seja menor depois do caldo).
Talvez o viúvo esteja reformado já do paladar.
Talvez o viúvo da fruta seja simplesmente doido.
Mas ele está no meu poema, faz parte
Desta zona de perecíveis
Que (d)escrevo.

Ribeira de Pena, 20 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007. A pintura (“A Dança”, de Bruegel, séc. XVI) foi colhida, com a devida vénia, em http://comunidade.sol.pt.]

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O senhor Cesário da contabilidade (Zona de Perecíveis 4)


À terça-feira chegam camiões
Carregados de fruta e de legumes frescos.
Viajam ainda com o cheiro materno da terra
E por horas conservam sinais do vento, da chuva, do sol.
Amontoados são uma discussão de cores e de brilho
Um debate sobre o lado visual da beleza
Um quadro súbito na secção dos perecíveis.
O senhor Cesário da contabilidade ri-se muito
Das semelhanças entre os vegetais e os humanos
Mas eu o que vejo é mais geral, quero dizer,
Possibilidades em cada coisa de outra coisa –
Por exemplo, as laranjas como crias do sol
Mal ainda abrindo os olhos.
O feijão verde como serpentinas brincando
Ao carnaval.
As cerejas como arrecadas africanas ou minhotas.
As maçãs como bolas de cristal muito feiticeiras.
As cenouras como estrelas cadentes na interrupção
Do voo.
As cebolas como polvos tímidos gemendo
Por mar.
Os tomates como narizes de palhaços
Em loja chinesa.
Visto tudo quanto transdigo pelas nove da manhã
Pode tratar-se de uma tela imorredoira.
Mas pela tarde não é assim já
No devir do relógio e do consumo:
As frutas e os legumes desaparecem
(ou deles a frescura)
Para lado nenhum.
A admiração regressará na próxima terça-feira
De camioneta.

Ribeira de Pena, 19 de Fevereiro de2011.
Joaquim Jorge Carvalho
(Uma primeira versão des poema foi escrita em 2007. A pintura ("Natureza morta com prato com cerejas") é de Cézanne.]

Zona d'ovos (Zona de Perecíveis 3)


O ovo podia ser o princípio de tudo
Ou a forma arredondada de eternidade:
Um pinto depois franga depois galinha
E outros ovos a haver, isto é, o futuro.
Mas às vezes acaba tudo numa embalagem ergonómica
Na hipermercabilização por secções
Com carimbos de preço, origem, tamanho
E duração
(desde o cu da galinha poedora ao fim dos tempos).
Ali espera todo o ovo a lei de Lavoisier, isto é
A graça terminal de um comprador distraído
Um saco, uma viagem, a morte.
Dá-se o caso de alguns serem tardiamente apreciados
Escolhidos tão depois do prazo que regressam
Pelo guichê previsto das reclamações –
É para esses o futuro um contentor de desperdícios
Cheio de muitas coisas com o valor de nada
(Ai, eu sei lá o que tem isto a ver com a vida!)
E talvez o resgate nocturno de imigrantes
Desesperados
Muito a leste lupino do consumo.

Ribeira de Pena, 18 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007.]

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ocaso não (Zona de Perecíveis 2)


A senhora já madura, no mercado
Escolhe a melancia com vagar;
Se acaso vê maduro algum bocado
Logo a devolve ao seu lugar.

Só leva para casa a melancia
Previsivelmente resistente
Ao tempo que virá até ao dia
Certo de a comer devidamente.

Ao lado, uma moça descuidada
Destas atenções não fará caso
E traz a melancia já tocada:

Não há senão agora para prazo
Da fome juvenil, tão apressada
Tão fora da ideia de ocaso.

Ribeira de Pena, 17 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007. A imagem (colhida em http://www.adorocinema.com) é a do cartaz do filme Nove Semanas e Meia, de 1986, realizado por Adrian Lyne.]

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Em Defesa do Desporto Escolar: Enunciado de Razões


Parece que o actual governo de Portugal, equivocamente auto-intitulado “socialista”, dá muito valor a estudos académicos para fundamentar decisões, políticas, decretos. Tomei boa nota dessa prática.
Nos últimos tempos, a Escola Pública tem estado sujeita aos ditames da mercearia orçamental. Brada aos céus o risco de, entre outras intempéries lesa-educação, se estar aparentemente à beira de matar o Desporto Escolar. Pensei: era preciso uma voz academicamente autorizada que falasse no assunto.
Ora, uma colega fez-me chegar, gentilmente, um tempestivo artigo do Professor Olímpio Bento, Director da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.
Ofereço-vos, para que alguns corem de vergonha, várias das ideias presentes nesta espécie de Carta Aberta ao governo.

A pratica das actividades desportivas, em sentido lato, expande-se a olhos vistos, em todo o mundo. Nunca como hoje foram tão altos os índices do seu consumo. Porém isto não permite afirmar que ela se tenha tomado um hábito da generalidade da população. Longe disso. Para o seu crescimento contribui sobretudo o aumento da adesão de grupos populacionais, tradicionalmente afastados dela. A abstinência continua a ser uma regra para alguns e noutros surge como uma tendência recente, a causar natural inquietação, até porque se mantém uma grave situação que regista níveis baixos, obviamente preocupantes, de activação desportiva e de aptidão corporal.
No concernente aos mais jovens assiste-se, nomeadamente em Portugal, a desinvestimentos nas ofertas organizadas de actividade lúdica e desportiva, numa total desconsideração das consequências nefastas para os atingidos.
Nesse quadro inserem-se situações ou ameaças de desvalorização do estatuto e do papel da disciplina de Educação Física e do Desporto Escolar, quer reduzindo o número de horas, quer indo ao cúmulo de lhe retirar o carácter obrigatório ou de riscar a sua existência. Acresce, nitidamente nas áreas urbanas, o desaparecimento das práticas lúdicas e desportivas espontâneas. Pelo que temos um número crescente de crianças e jovens com défices no capítulo da competência desportivo-motora, da condição corporal e da socialização […].
É preciso contrariar esta circunstância. A inactividade corporal e mental, agora reinante, convoca medidas urgentes para aumentar e melhorar o índice da activação e da condição corporal das pessoas. […] Não custa reconhecer linhas de causalidade e reciprocidade entre a envoltura obesogénica, a crise da ética, a debilidade ou eclipse da vontade e a «cultura’ da passividade». Há, por isso, que intervir neste todo tão complexo, empregando instrumentos apropriados. […]
Se apurarmos a reflexão, o olhar e entendimento da sua função, vemos que o desporto é uma pedagogia do esforço, da acção e vontade, tão necessária para reabilitar a escola e ajudar esta a cumprir a sua missão central; para que nela não se faça o que se quer, mas se queira e deseje aquilo que se faz. Os actos desportivos são essencialmente exercícios espirituais, morais e anímicos, somente são físicos na aparência; na sua substância e consumação são sempre decisões volitivas, uma mobilização da vontade para buscar o que nos falta ou conservar o que temos. As mãos e os pés tentam fazer por fora aquilo que a razão e a alma, o ânimo e o coração idealizam e fazem por dentro. Deste jeito a arquitectura exterior do desempenho motor e do formato dos ossos, músculos e articulações está ligada à arquitectura interior da consciência e da vontade.
«Mais alto, mais longe, mais veloz, mais resistente, mais forte!» Não apenas no plano gestual e performativo, mas também e sobretudo no plano ético e estético, no moral e comportamental, no sentimental e espiritual. O lema olímpico exorta a fazer um uso sempre superior e renovado das nossas capacidades e possibilidades. Apela a que não nos contentemos com o pequeno, o mediano e o relativo; e ousemos subir cada dia mais um degrau, porquanto o absoluto e o infinito são a medida do Homem.
É por isso que o apelo vai além do desporto; faz deste um emblema e um factor da educação e da vida, uma categoria antropológica. Os problemas atrás aflorados, no tocante às múltiplas e gravosas implicações do ambiente obesogénico e do relativismo cultural, constituem um teste à nossa lucidez. Desafiam-nos a intervir na paisagem educativa, a semeá-la de metas, de sonhos e de sentido humano. A substituir os apelos e lamentações por estratégias de actuação e responsabilização. […]
[E] se a Escola […] não fizer nada para criar uma atmosfera que motive para a prática desportiva os alunos mais fracos e carenciados em termos corporais e motores; se habituar estes à permanência no insucesso, na desilusão, na frustração, na resignação, marginalização e exclusão: se favorecer atitudes de recusa e saída do desporto, então não surpreenderá que os jovens apresentem níveis baixos de aptidão física e de saúde.
Ora a educação funda-se precisamente na preocupação de enraizar uma cultura do apreço, da valorização e fruição da vida! A escola percorre este caminho quando nela há movimento, carga, trabalho, suor e esforço: quando há golos, cestos, pontos e remates; quando se corre, salta e luta; quando se vencem receios, complexos e medos; quando se enfrentam e ultrapassam barreiras e obstáculos; quando há optimismo e empenhamento; quando há desejo, gosto e oportunidade de exercitar, aprender e render; quando há regozijo na vitória e a derrota forja o ânimo e a determinação de tentar ganhar; quando agir, fazer e experimentar são os verbos preferidos, e desistir, não participar e estar fora de jogo são comportamentos proibidos; quando corpos grandes e pequenos, gordos e magros, fortes e débeis, velozes e lentos são iguais no gosto pela acção e pelo seu uso desportivo. Quando tudo isto contribui para que a prática desportiva se tome uma necessidade vital, integrante de um estilo de vida fomentador da saúde. E isto é possível!
Logo, sendo possível, tem que merecer o nosso contagiante entusiasmo. A criação de um ambiente desportivo pode ajudar a escola a recentrar se na sua missão essencial e a encontrar os caminhos da cooperação com as instituições que comungam do mesmo destino. Pode ajudar a reintroduzir a convicção de que ela é um estaleiro de trabalho porfiado, de esforço persistente, de obrigações contínuas, de tarefas incessantes, de exercícios e repetições sem fim, de suor e afinco inevitáveis. […]
Do que carecemos nesta hora, na educação e na vida, é de mais e melhor prática desportiva, de vontade e brio, de uma moral em acção. Prescindir do desporto ou afrouxar na sua promoção e no cultivo do seu ideário equivale a empobrecer os cidadãos nas dimensões técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas e morais, anímicas e volitivas; e a favorecer a proliferação do laxismo e relativismo, do individualismo e da indiferença.

(Porto, 14 de Janeiro de 2011. O Director da Faculdade de Desporto, Jorge Olímpio Bento)

Ribeira de Pena, 16 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Na minha condição de responsável pelo blogue, optei por fazer regressar o enunciado à sua condição ortográfica pré-Acordo. Desculpai, mas custa-me tanto aderir…]

Departamento Pessoal de Estar Muito Cansado


À vida menos linda contrariado obedeço
P’la trela de decretos, reuniões à perna;
A outra vida que, por mim, mereço
E peço
É coisa mui diversa da tolice moderna.

Dava mil consílios por uma aula boa!
Dava mil relatórios por Coimbra ou Lisboa!
Dava o meu lugar por um lugar no mar!
Dava um milhão de cargos por serenamente
(Longe longe longe da burocracia impura)
Falar a alunos e a toda a gente
Na beleza da língua e da literatura!

Houve aquele tempo em que quis
Ser professor e me julguei feliz
Para sempre, talvez.
O sonho, sei agora, era a primavera
Que eu, antes, me era
(que nos somos só uma vez).
Mas veio depois o nevoeiro intenso
(quero dizer: este presente denso;
quero dizer: este inverno imenso) -

E o tal sonho que era ingénuo e leve
(como alguns versos, alguns amores)
Morreu algures, senhores:
Morreu na neve.

Ribeira de Pena, 16 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem ("Mafalda", de Quino, foi colhida, com a devida vénia, em http://transportemdp.files.wordpress.com.]

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Versos, a vida


O pai morreu. O telefone interrompeu o sábado
E o meu irmão chorou o primeiro verso:
O pai morreu.

Minha mãe trabalhava nos têxteis.
Fazia colarinhos em camisas lisas
Até lhe doer o pescoço.


Depois, o silêncio.
O silêncio inteiro desde a manhã
À noite de domingo. Até agora. O silêncio
Dos nossos olhos cheios de nada. O silêncio
Funcionário de velar. O silêncio
Depois da morte.

Meu pai confundiu-lhe as olheiras
(Do cansaço)
Com a sombra romântica das apaixonadas.
Ela soube do homem com brilhantina
À hora de cruzarem as seis horas.


Minha mãe disse: é a vida.
E éramos todos velhos ali –
Perdidos na rua final de tudo.

Minha mãe não era então ainda a minha mãe.
Mas a rouquidão masculina e o tony de matos
Sacrificaram nela a virtude à impaciência:
Meu irmão nasceu primeiro e eu depois.


Minha mãe tem diabetes e muita tristeza:
A doença faz-lhe mal aos olhos
E ao coração.


Versos, a vida.
O último verso é aqui

O pai morreu.

Ribeira de Pena, 15 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão do poema foi escrita no ano de 2007.]

Dedicatória Não


Estás muito enganada, ó íssima
Dos meus dias idos e vindos
Se julgas que apenas por isso
Te vou dedicar um poema

Ou mesmo lá porque tenhas
Uma indefinição clara
Nos olhos e não se saiba
Exactamente a cor do que és.

Era só o que faltava
Ter de parir um poema
Simplesmente porque não posso

Esquecer-te as mãos e a voz
Nem consigo dormir. Não

Escrevo poemas a ninguém!

Ribeira de Pena, 15 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[In Desapontamentos dos Dias, Coimbra, Ed. A Mar Arte, 1995. A imagem é a do cartaz de um enormíssimo filme de 1993, realizado por Richard Attenborough, Dois Estranhos, Um Destino.]

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Todas as quadras de amor são ridículas


Os meus olhos são sinais
Ou letras que depois lês;
Se os olhas, brilham mais
E choram se os não vês.

Ribeira de Pena, 11 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é a da capa de um dos mais belos livros que li na minha vida, o L'Écume des Jours, do grande Boris Vian.]

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Míngua de Dizer (Zona de Perecíveis 1)


Se já em mim houvesse a linguagem suficiente
teria perguntado à entrada no mundo
a verdade –
o que é isto onde chego mãe o que é
a vida e talvez
não houvesse resposta para mim ou
decerto alguém diria depende, não se sabe
depois verás.

A idade de ser poeta digo-te
começa na possibilidade de responder
à pergunta não feita na altura certa
(por défice natural de linguagem) é
a idade de olhar para o mundo isto é
de olhar para o tempo
e perceber tudo num sobressalto ah! era isto
o mundo a vida a verdade!

Pois tão pouco nos falta viver quando enfim vemos
tão grande é a compreensão e tão curto
o horizonte
tão incompletos somos já na hora sábia
tão falhos de cabelo dentes agilidade.

Que permanece senhores senão esta míngua
de dizer isto tanto que
claramente vislumbramos só agora
tão completamente tarde?

Sorri tu amor por nós que há luz ainda
neste entardecer que juntos cumprimos
ainda há a tua mão na minha mão aberta
ainda há o teu riso franco pelas minhas graças
repetidas
ainda o cúmplice encanto por um pássaro bêbedo
cambaleando
no
céu.

Nenhum livro entretanto pôde dizer tudo
nenhuma palavra conseguiu resolver
o mistério
este muito doido enigma de querermos tão
excessivamente permanecer
nenhuma poesia fechou o exercício civil do ano
nenhuma contabilidade poética deu resto zero.

Sobrevém a hipótese de haver ainda sol e passos
(o teu sorriso, a minha mãe à soleira da porta, um gato
ou um cão
mansinho)
e de apesar de tantas noites
tantas interrupções no caminho da luz
em mim haver esta teimosia antiga
alimentada de quase nada pela manhã
correndo-me sempre pelo sangue ingenuamente
esquecida de cansaços brutos da falta
de dinheiro de ilusão de imortalidade.

O que há ainda em mim é enfim o meu amor
tão bonito à volta das cerejas
na zona sabes tu dos perecíveis.

Triste é ser a vida um rio e ter de haver foz
triste é a finitude da tua gargalhada
meu amor e que estúpido pois é o verão não
ter ainda começado
e faltar tão pouco já
para ser inverno.

Coimbra, 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007. Quanto à imagem: meu pai aos vinte e poucos anos, em foto de má qualidade. Eu noutro perecível tempo, portanto.]

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Personagens, Pessoas (e vice-versa)


Ando a escrever uma história. Conheço cada vez melhor as personagens e, à medida que elas crescem com a acção, sinto-as mais frágeis, mais complexas, mais próximas - portanto, mais humanas.
Hoje, à hora do almoço, senti uma espécie de urgência de, por minutos que fosse, remergulhar no território desta história que ando a escrever.
Pode o criador sentir saudades das criaturas? Aparentemente, sim.
Ou talvez suceda que, no processo de criação, criador e criatura não estejam afinal separados e sejam sobretudo (atenção à palavra) contemporâneos de um mesmo milagre: a vida que, juntos, significam; a vida que, juntos, fazem; a vida que, juntos, são.

Vila Pouca de Aguiar, 09 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Relógio do Sol


A terra onde vivo é rica em velhos.
Tenho notado que eles se regulam pelo sol. Sentem o entardecer como o anúncio de um fim, remediável embora porque no dia seguinte tudo, talvez, se repetirá.
Sou há muitos anos velho nesta disciplina delicada do tempo a passar. Gosto aliás de, por ciente desse fim iminente da luz, serenamente atravessar as horas anteriores à noite. Conheço o fenómeno. Sinto-o. Domino-o.
Adormeço até muitas vezes como quem morre feliz.
Afinal, o pior dos óbitos é só a ideia de não haver amanhã seguinte, já que, enquanto vivos, se morre muito agradavelmente todos os dias, para depois regressarmos com o sangue renovado.
Eu estou já, antes do tempo oficial da velhice, um velho muito cúmplice do entardecer. Aceito a despedida do sol, compreendo-a e cumpro-a também em mim.

Que horas são?

Arco de Baúlhe, 08 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (pintura "Entardecer nos vales", de Alfredo Keil, do ano de 1898) foi colhida, com a devida vénia, em http://mjm.imc-ip.pt]

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Mistério d'Entre Mundos


Em cada decote existe
A promessa de prazer
De que ele nunca desiste
E ela finge esconder.

Ribeira de Pena, 07 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Gweeneth Paltrow, naturally) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.adorocinema.com]

Testemunhar o Génio


Ainda vi jogar Eusébio. Pela televisão, numa final entre o Benfica e o Sporting. Ao vivo, no Estádio da Luz, contra o União de Coimbra, e uma última vez, no Estádio Municipal da minha cidade, em jogo (a brincar) de veteranos.
Não tive bem a noção de, vendo-o, estar então tendo o privilégio de ser contemporâneo de uma lenda.
Mas posso ver Cristiano Ronaldo.
Hoje, num encontro que opôs Real Madrid à Real Sociedad, vi um festival de técnica, de inteligência, de arte e daquela espécie de vício irreprimível que o madeirense tem de jogar bem. Dos pés, da cabeça, até das costas do número 7, saíram piruetas, passes, remates, coreografias, acrobacias, efeitos especiais, golos.
Dois cafés e uma cervejinha depois, eu ainda tinha na memória raides da genialidade deste português universal. Não é possível amar o futebol sem reconhecer em Cristiano Ronaldo uma sublime condição. É (como, talvez, Messi) um extra-terrestre que desceu, para glória da sua geração, ao relvado do mundo.
Dele direi um dia a meus netos, se chegar a avô velho, o que disseram - no passado - de Eusébio, de Pelé, de Maradona e dos génios de todas as artes em geral: torna(va) possível o que parecia impossível. E eu, queridos netos, vi-o um dia a jogar contra a Real Sociedad…

Ribeira de Pena, 06 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.maisfutebol.iol.pt.]

sábado, 5 de fevereiro de 2011

(Pre) Visões de Viagem


1.
Sonhei com mortos: familiares, amigos, alunos, colegas, um menino que em 1969 morreu atropelado na curva do Café Lusa Nova, em Coimbra.

2.
A verdade é que me deitei com a derrota do (meu) Sporting, pelo que a ideia da morte terá algo a ver com o Estádio de Alvalade. Foi também nessa noite que o jogador Liedson partiu para sempre (outra forma de morte), o que reforça a ligação entre a minha existência acordada e a minha existência sonhada.

3.
No meu sonho (aliás, na parte que recordo do meu sonho), havia muitas malas. É natural. Como estou há tantos anos em trânsito, os funerais implicam - como os casamentos ou as eleições - estas tarefas de viajante habituado. As malas fazem parte da paisagem viva das casas por onde eu e a MP passamos.

4.
Acordei com a ideia – recorrente nos últimos tempos – de ser urgente prepararmos a vida que sucederá à nossa própria partida para sempre. A religião insiste muito na necessidade de estarmos prontos, mas trata-se aí da questão muito específica de se salvar a alma. A mim preocupa-me também salvar de mim o que vale(u) a pena para os outros.

5.
Não me dispenso de, com irregular entusiasmo, contribuir para melhorar o mundo: ofereço o (pouco) que sei aos que me rodeiam; sou um teimoso e talvez insuportável crítico dos erros evitáveis; cultivo a portuguesa língua e a universal literatura em todas as esquinas do meu viver; cuido como posso dos que dependem de mim. E escrevo.

6.
A escrita, de facto, anda comigo desde os seis anos de idade. Não escrever, para mim, seria como estar dentro de um escafandro (para usar uma eficaz imagem de um livro recente). O que tenho para comunicar realiza-se no que digo de viva voz ou no que digo com a ortografia. Mas o que digo, se escrito, é sempre mais verdadeiramente o que quero dizer.

7.
Regresso à morte, que é a viagem definitiva a haver. As viagens devem ser, tanto quanto possível, preparadas no lugar de onde partimos. É preciso que, em devido tempo, façamos as malas.

8.
- Que andas tu a fazer, Joaquim Jorge Carvalho, quando escreves poesia, crónicas, teatrices, narrativas?
- Ando a fazer as malas.

Ribeira de Pena, 05 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

A Escola Portuguesa vista de Fevereiro


Às vezes estamos mortos e fingimos
Às vezes existimos por favor
Às vezes hesitamos desistimos
Às vezes suspendemos o amor

Às vezes esquecemos ignoramos
Às vezes somos restos do que fomos
Às vezes não andamos não ficamos
Às vezes não sabemos o que somos

Às vezes somos vinho somos pão
Às vezes somos mapa estrela estrada
Às vezes somos tanto e somos tão

Às vezes a vidinha renovada
Às vezes somos sonho depois não
Às vezes tantas vezes somos nada

Ribeira de Pena, já 05 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é o cartaz do maravilhoso filme Les Choristes (França, 2004), de Christophe Barratier , e foi colhida – com a devida vénia – em http://filmenellozaino.wordpress.com.]

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Barcos apesar do cais


A VL demorou ontem a telefonar-nos. A MP e eu assustámo-nos muito, como um par de crianças subitamente perdidas de seus pais.
Só quando o telefone tocou é que a amável rotina regressou à Avenida da Noruega.
Os filhos são barcos navegando fora de nós. Porto, portanto, somos. Sinto-o. Sei-o.
Sucede que também nos corações portuários se sofre com a ausência e o silêncio dos navegantes.

Arco de Baúlhe, 04 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é a de um quadro de William Turner e foi colhida, com a devida vénia, em http://comunidade.sol.pt]

O amor é um combustível antigo


Somos, irmãos, a lenha do Tempo.
Ardemos sem remédio na lareira da Casa Maior. Ardemos até à cinza. Não há alternativa ao fim senão, no intervalo de estarmos ardendo, a espera.
Fumos abandonam(os) fragilmente, todos os dias, a Casa Maior, subindo ao céu consabido de Lavoisier.
Parece que de nós, depois de ardidos, não fica nada.
Mas fica: um restinho de calor, pelas sete horas gélidas de cada nova manhã, é uma saudade de termos estado.
Somos, Tempo, a tua lenha. Enquanto ardemos, aquecemos-te a Casa.

Ribeira de Pena, 03 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fugirarealidade.blogspot.com.]

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Amador & cousa amada


A nudez mais bela é a que imagino. A outra - a ostensiva, a bruta, a escancarada - é tão excitante como uma radiografia ou um cadáver.
Não faço juízos de valor sobre a pornografia e, às vezes, espreito-a como qualquer outro porco curioso. Mas nenhuma evidência destas se compara ao erotismo.
Entre o exercício mecânico da fornicação (com suas célebres técnicas de acrobatas medicamentados) e dois pés escondidos tocando-se, sob a mesa (in)decente da condessa de Gouvarinho, não há hesitação possível, pois não?
Brian De Palma realizou um filme onde tudo quanto ora digo se (me) tornou para sempre percebido. Intitulou-o Testemunha de um Crime, e não disfarçou o facto de a sua obra se tratar de uma óbvia homenagem à Janela Indiscreta, de Hitchcock. Eu recordo-me sobretudo de uma senhora experimentando lingerie, numa pouco protegida loja de roupa, e de um enfeitiçado homem que, do lado de cá da montra, a espreitava por uma nesga de horizonte. Garanto-vos: era mais o que, entre intervalos de carne e rendas, se imaginava do que o que se via. Mas a imagem desassossegou-me hormonas e cérebro durante a vida seguinte. Ainda hoje sonho (acordado, às vezes) com a porta entreaberta daquele provador.
O sumário disto tudo tem menos de porcaria que de lirismo ou de bom senso: é que a Beleza compreende uma margem de mistério sine qua non. A nossa admiração e o nosso desejo, embora instintivos e erécteis por natureza, não dispensam afrodisíacos menos óbvios.
A graça, a inteligência, a elegância, o humor - eis algumas das outras nesgas por onde se esgueira o outro voyeur que sou.
Revelar é mais interessante do que mostrar, eis tudo.
De modo que, como eu a vejo, a Gweeneth Paltrow há-de estar algures numa esplanada em Paris. Veste uma saia demasiado curta para lhe esconder os joelhos. Toma um café vagaroso e distraído. Finge não dar conta dos olhares masculinos à sua roda, gulosos e desesperados como bem adivinho. Lê, com pose serena, um trecho de Sexus do senhor Henry Miller. A narrativa escandaliza-a e excita-a. Desvia a cadeira para que passe uma respeitável velhinha com um caniche de neve. Finalmente levanta-se e, à passagem por mim, atira para a manhã um sorriso de sol atrevido. Diz ainda, com sotaque inglês, "À demain". É, simultaneamente, uma noviça em recreio improvável, uma dissoluta à caça de amadores, uma burguesa culta cansada da normalidade e uma senhora de família no intervalo da respeitabilidade regular.
Tudo isto é imaginário e, com alguma certeza, impossível. E o resultado é que não conheço outro desejo maior do que este.

Ribeira de Pena, 02 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Gweeneth Paltrow como Sylvia Plath) foi obtida, com a devida vénia, em http://media.adorocinema.com]

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Se aqueles lábios fossem fruta de pomar


Se os lábios desta donzela
Fossem frutos de pomar
Eu deixava-os medrar
Rubrodoces como ela.

Queria vê-los crescer
À altura da janela
Onde, em vez de os colher,
Diria olá à donzela.

Lábios assim de pomar
Seriam fruta sagrada -
Eu havia de os regar
Com litros d’água beijada!

Ribeira de Pena, 01 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Alegria com medida


Às vezes, o horizonte é tão curto à roda de nós.
Às vezes, é tão improvável a bondade dos dias.
Às vezes, somos tão pequenos se comparados com o tamanho dos sonhos ou dos desejos que éramos.
Por outro lado, é tão provável, no futuro, o menos que isto. Tão fatal o quase nada e, depois, o nada absoluto. Tão tragicamente certo que há fim e que o fim, ainda que demore, chegará.
De modo que isto agora, sendo pouco e triste, é decerto melhor que o nada seguinte. Deixai, pois, que vos e me ofereça esta espécie de alegria: a de, por enquanto, a nossa infelicidade ser menor do que poderia (do que há-de) ser.
Escutai-me. Eu costumava perguntar, ao Mestre João (amigo de que nunca me esqueço para ele me não morrer completamente):
- Como está, senhor João?
E sempre ele respondia, rindo-se antes ou depois de mim:
- Estou melhor do que aqueles que estão pior.
Se me perguntassem agorinha mesmo como estou, seria essa também a resposta.
A minha alegria tem os limites e as dores normais da condição humana. Tenho pouco. Sou pouco. Olho para trás e para diante e, confesso, não encontro motivos para euforias excessivas. Mas olhai, irmãos, vista a coisa daqui e d’hoje, não é mau.

Ribeira de Pena, 01 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho