"No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas
São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada..."
(Zeca Afonso, "Os Vampiros", 1987.)
Não é a primeira vez que me acontece. Tenho na cabeça uma ideia para desenvolver sob a forma de crónica e, aos primeiros olhares sobre o JN, percebo que o indispensável Manuel António Pina já disse o que eu pretendia dizer. Ao invés de me aborrecer, isso consola-me: não é mau destino andar pelo fuso ético de um grande poeta e de um grande cronista.
Lembro, de qualquer modo, o facto político que veio incomodar, nestes últimos dias, o centrão português, esse território hipócrita e obeso da nosssa contemporaneidade democrática: Bloco de Esquerda, PCP e CDS queriam que a Asssembleia da República estabelecesse limites aos vencimentos obscenos da administração pública (pautando essa fronteira pelo ordenado do presidente da República). O PS e o PSD - ó surpresa das surpresas! - recusaram-se a tal. Desta feita, até Marcelo Rebelo de Sousa reconheceu, para escândalo e vergonha da cambada do centro, que só a confluência de interesses e clientelas impediu a assunção desta medida higiénica. E, adivinha-se, boys e girls laranjas e cor-de-rosa suspiraram, aliviados, decerto gratos.
Confirma-se, assim, o que já há muito se percebia: as diferenças entre PS e PSD são muito poucas, senão nulas. E ou esses partidos mudam, de dentro, ou a alternativa (pacífica, democrática) a este presente indecoroso está só à sua esquerda ou à sua direita.
Um voto, hoje, no PSD ou no PS (versão socrática) é um voto de resignação, de desistência ou de mera defesa de pontuais interesses. Só fazendo muito, muito,muito de conta, é que não se vê isto.
Estou longe de ser um militante de Bloco, PCP ou CDS, mas a verdade é esta: o centrão anda a conferir a estas periferias um espaço central que, até a elas próprias, pareceria há pouco tempo insuspeitável.
Depois, queixem-se.
Ribeira de Pena, 22 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
2 comentários:
Os políticos do centrão sabem bem que essas posições suas, de apadrinhamento dos grandes interesses (ou melhor, dos interesses dos grandes), não são populares. Alguns estão envolvidos, outros têm ligações, outros serão movidos pelo que entendem ser o realismo na luta pelos «melhores» quadros e gestores.
É sempre mais fácil a partidos de protesto, ou da periferia, como dizes, bradarem aqui d'el-rei. Capitalizam votos e associam-se ao sentimento geral.
Parece-me que o pretenso realismo do centrão se baseia na convicção de que o risco de desagradar aos maiorais da finança é superior ao risco de os cidadãos comuns se sublevarem contra estas perversões. Eles já fizeram a sua escolha. Pode bem suceder que venham a lamentá-la amargamente.
Um abraço
Exactly, exactly, exactly!
Abraço.
JJC
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