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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Em Defesa do Desporto Escolar: Enunciado de Razões


Parece que o actual governo de Portugal, equivocamente auto-intitulado “socialista”, dá muito valor a estudos académicos para fundamentar decisões, políticas, decretos. Tomei boa nota dessa prática.
Nos últimos tempos, a Escola Pública tem estado sujeita aos ditames da mercearia orçamental. Brada aos céus o risco de, entre outras intempéries lesa-educação, se estar aparentemente à beira de matar o Desporto Escolar. Pensei: era preciso uma voz academicamente autorizada que falasse no assunto.
Ora, uma colega fez-me chegar, gentilmente, um tempestivo artigo do Professor Olímpio Bento, Director da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.
Ofereço-vos, para que alguns corem de vergonha, várias das ideias presentes nesta espécie de Carta Aberta ao governo.

A pratica das actividades desportivas, em sentido lato, expande-se a olhos vistos, em todo o mundo. Nunca como hoje foram tão altos os índices do seu consumo. Porém isto não permite afirmar que ela se tenha tomado um hábito da generalidade da população. Longe disso. Para o seu crescimento contribui sobretudo o aumento da adesão de grupos populacionais, tradicionalmente afastados dela. A abstinência continua a ser uma regra para alguns e noutros surge como uma tendência recente, a causar natural inquietação, até porque se mantém uma grave situação que regista níveis baixos, obviamente preocupantes, de activação desportiva e de aptidão corporal.
No concernente aos mais jovens assiste-se, nomeadamente em Portugal, a desinvestimentos nas ofertas organizadas de actividade lúdica e desportiva, numa total desconsideração das consequências nefastas para os atingidos.
Nesse quadro inserem-se situações ou ameaças de desvalorização do estatuto e do papel da disciplina de Educação Física e do Desporto Escolar, quer reduzindo o número de horas, quer indo ao cúmulo de lhe retirar o carácter obrigatório ou de riscar a sua existência. Acresce, nitidamente nas áreas urbanas, o desaparecimento das práticas lúdicas e desportivas espontâneas. Pelo que temos um número crescente de crianças e jovens com défices no capítulo da competência desportivo-motora, da condição corporal e da socialização […].
É preciso contrariar esta circunstância. A inactividade corporal e mental, agora reinante, convoca medidas urgentes para aumentar e melhorar o índice da activação e da condição corporal das pessoas. […] Não custa reconhecer linhas de causalidade e reciprocidade entre a envoltura obesogénica, a crise da ética, a debilidade ou eclipse da vontade e a «cultura’ da passividade». Há, por isso, que intervir neste todo tão complexo, empregando instrumentos apropriados. […]
Se apurarmos a reflexão, o olhar e entendimento da sua função, vemos que o desporto é uma pedagogia do esforço, da acção e vontade, tão necessária para reabilitar a escola e ajudar esta a cumprir a sua missão central; para que nela não se faça o que se quer, mas se queira e deseje aquilo que se faz. Os actos desportivos são essencialmente exercícios espirituais, morais e anímicos, somente são físicos na aparência; na sua substância e consumação são sempre decisões volitivas, uma mobilização da vontade para buscar o que nos falta ou conservar o que temos. As mãos e os pés tentam fazer por fora aquilo que a razão e a alma, o ânimo e o coração idealizam e fazem por dentro. Deste jeito a arquitectura exterior do desempenho motor e do formato dos ossos, músculos e articulações está ligada à arquitectura interior da consciência e da vontade.
«Mais alto, mais longe, mais veloz, mais resistente, mais forte!» Não apenas no plano gestual e performativo, mas também e sobretudo no plano ético e estético, no moral e comportamental, no sentimental e espiritual. O lema olímpico exorta a fazer um uso sempre superior e renovado das nossas capacidades e possibilidades. Apela a que não nos contentemos com o pequeno, o mediano e o relativo; e ousemos subir cada dia mais um degrau, porquanto o absoluto e o infinito são a medida do Homem.
É por isso que o apelo vai além do desporto; faz deste um emblema e um factor da educação e da vida, uma categoria antropológica. Os problemas atrás aflorados, no tocante às múltiplas e gravosas implicações do ambiente obesogénico e do relativismo cultural, constituem um teste à nossa lucidez. Desafiam-nos a intervir na paisagem educativa, a semeá-la de metas, de sonhos e de sentido humano. A substituir os apelos e lamentações por estratégias de actuação e responsabilização. […]
[E] se a Escola […] não fizer nada para criar uma atmosfera que motive para a prática desportiva os alunos mais fracos e carenciados em termos corporais e motores; se habituar estes à permanência no insucesso, na desilusão, na frustração, na resignação, marginalização e exclusão: se favorecer atitudes de recusa e saída do desporto, então não surpreenderá que os jovens apresentem níveis baixos de aptidão física e de saúde.
Ora a educação funda-se precisamente na preocupação de enraizar uma cultura do apreço, da valorização e fruição da vida! A escola percorre este caminho quando nela há movimento, carga, trabalho, suor e esforço: quando há golos, cestos, pontos e remates; quando se corre, salta e luta; quando se vencem receios, complexos e medos; quando se enfrentam e ultrapassam barreiras e obstáculos; quando há optimismo e empenhamento; quando há desejo, gosto e oportunidade de exercitar, aprender e render; quando há regozijo na vitória e a derrota forja o ânimo e a determinação de tentar ganhar; quando agir, fazer e experimentar são os verbos preferidos, e desistir, não participar e estar fora de jogo são comportamentos proibidos; quando corpos grandes e pequenos, gordos e magros, fortes e débeis, velozes e lentos são iguais no gosto pela acção e pelo seu uso desportivo. Quando tudo isto contribui para que a prática desportiva se tome uma necessidade vital, integrante de um estilo de vida fomentador da saúde. E isto é possível!
Logo, sendo possível, tem que merecer o nosso contagiante entusiasmo. A criação de um ambiente desportivo pode ajudar a escola a recentrar se na sua missão essencial e a encontrar os caminhos da cooperação com as instituições que comungam do mesmo destino. Pode ajudar a reintroduzir a convicção de que ela é um estaleiro de trabalho porfiado, de esforço persistente, de obrigações contínuas, de tarefas incessantes, de exercícios e repetições sem fim, de suor e afinco inevitáveis. […]
Do que carecemos nesta hora, na educação e na vida, é de mais e melhor prática desportiva, de vontade e brio, de uma moral em acção. Prescindir do desporto ou afrouxar na sua promoção e no cultivo do seu ideário equivale a empobrecer os cidadãos nas dimensões técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas e morais, anímicas e volitivas; e a favorecer a proliferação do laxismo e relativismo, do individualismo e da indiferença.

(Porto, 14 de Janeiro de 2011. O Director da Faculdade de Desporto, Jorge Olímpio Bento)

Ribeira de Pena, 16 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Na minha condição de responsável pelo blogue, optei por fazer regressar o enunciado à sua condição ortográfica pré-Acordo. Desculpai, mas custa-me tanto aderir…]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Não se pode pactuar com a marginalização da Educação Física. O desporto e a actividade física são essenciais para a formação e maturação dos miúdos. Para além de serem uma das disciplinas preferidas de muitos e uma fonte de auto-estima para muitos que rendem pouco nos estudos académicos... Espero que o poder político tenha juízo!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

"Juízo", com efeito, é o que se recomenda. Abraço.