Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 5 de fevereiro de 2011

(Pre) Visões de Viagem


1.
Sonhei com mortos: familiares, amigos, alunos, colegas, um menino que em 1969 morreu atropelado na curva do Café Lusa Nova, em Coimbra.

2.
A verdade é que me deitei com a derrota do (meu) Sporting, pelo que a ideia da morte terá algo a ver com o Estádio de Alvalade. Foi também nessa noite que o jogador Liedson partiu para sempre (outra forma de morte), o que reforça a ligação entre a minha existência acordada e a minha existência sonhada.

3.
No meu sonho (aliás, na parte que recordo do meu sonho), havia muitas malas. É natural. Como estou há tantos anos em trânsito, os funerais implicam - como os casamentos ou as eleições - estas tarefas de viajante habituado. As malas fazem parte da paisagem viva das casas por onde eu e a MP passamos.

4.
Acordei com a ideia – recorrente nos últimos tempos – de ser urgente prepararmos a vida que sucederá à nossa própria partida para sempre. A religião insiste muito na necessidade de estarmos prontos, mas trata-se aí da questão muito específica de se salvar a alma. A mim preocupa-me também salvar de mim o que vale(u) a pena para os outros.

5.
Não me dispenso de, com irregular entusiasmo, contribuir para melhorar o mundo: ofereço o (pouco) que sei aos que me rodeiam; sou um teimoso e talvez insuportável crítico dos erros evitáveis; cultivo a portuguesa língua e a universal literatura em todas as esquinas do meu viver; cuido como posso dos que dependem de mim. E escrevo.

6.
A escrita, de facto, anda comigo desde os seis anos de idade. Não escrever, para mim, seria como estar dentro de um escafandro (para usar uma eficaz imagem de um livro recente). O que tenho para comunicar realiza-se no que digo de viva voz ou no que digo com a ortografia. Mas o que digo, se escrito, é sempre mais verdadeiramente o que quero dizer.

7.
Regresso à morte, que é a viagem definitiva a haver. As viagens devem ser, tanto quanto possível, preparadas no lugar de onde partimos. É preciso que, em devido tempo, façamos as malas.

8.
- Que andas tu a fazer, Joaquim Jorge Carvalho, quando escreves poesia, crónicas, teatrices, narrativas?
- Ando a fazer as malas.

Ribeira de Pena, 05 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

monge disse...

Belos pontos de vista de maneiras de sentir!
Também eu muitas vezes adormeço com a ideia da morte, essa terrível escuridão. Contudo, de manhã, num renovado acordar, esqueço-me o quanto duro, relativizo o penoso dever da existência e dedico-me a viver ... nem que seja de uma forma estranha.
Já agora: no ponto das tuas (pre)visões, não vislumbras nenhum sinal que os nossos governates façam as malas e se ponham daqui andar (sem ser para paraísos fiscais, óbvio). Que jeito dava!
Abraço.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Que jeito dava, sim!

Abraço.