Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Míngua de Dizer (Zona de Perecíveis 1)


Se já em mim houvesse a linguagem suficiente
teria perguntado à entrada no mundo
a verdade –
o que é isto onde chego mãe o que é
a vida e talvez
não houvesse resposta para mim ou
decerto alguém diria depende, não se sabe
depois verás.

A idade de ser poeta digo-te
começa na possibilidade de responder
à pergunta não feita na altura certa
(por défice natural de linguagem) é
a idade de olhar para o mundo isto é
de olhar para o tempo
e perceber tudo num sobressalto ah! era isto
o mundo a vida a verdade!

Pois tão pouco nos falta viver quando enfim vemos
tão grande é a compreensão e tão curto
o horizonte
tão incompletos somos já na hora sábia
tão falhos de cabelo dentes agilidade.

Que permanece senhores senão esta míngua
de dizer isto tanto que
claramente vislumbramos só agora
tão completamente tarde?

Sorri tu amor por nós que há luz ainda
neste entardecer que juntos cumprimos
ainda há a tua mão na minha mão aberta
ainda há o teu riso franco pelas minhas graças
repetidas
ainda o cúmplice encanto por um pássaro bêbedo
cambaleando
no
céu.

Nenhum livro entretanto pôde dizer tudo
nenhuma palavra conseguiu resolver
o mistério
este muito doido enigma de querermos tão
excessivamente permanecer
nenhuma poesia fechou o exercício civil do ano
nenhuma contabilidade poética deu resto zero.

Sobrevém a hipótese de haver ainda sol e passos
(o teu sorriso, a minha mãe à soleira da porta, um gato
ou um cão
mansinho)
e de apesar de tantas noites
tantas interrupções no caminho da luz
em mim haver esta teimosia antiga
alimentada de quase nada pela manhã
correndo-me sempre pelo sangue ingenuamente
esquecida de cansaços brutos da falta
de dinheiro de ilusão de imortalidade.

O que há ainda em mim é enfim o meu amor
tão bonito à volta das cerejas
na zona sabes tu dos perecíveis.

Triste é ser a vida um rio e ter de haver foz
triste é a finitude da tua gargalhada
meu amor e que estúpido pois é o verão não
ter ainda começado
e faltar tão pouco já
para ser inverno.

Coimbra, 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita em 2007. Quanto à imagem: meu pai aos vinte e poucos anos, em foto de má qualidade. Eu noutro perecível tempo, portanto.]

2 comentários:

Anónimo disse...

...e triste é haver conhecimento que a felicidade é passageira.
Não seria mais fácil a forma tradicional de pepal e tinta, em livro.
Os méritos desta liberdade são inúmeros mas as fragilidades do não reconhecimento são ingratas.
abraço
albino

Joaquim Jorge Carvalho disse...

A escrita é a escrita. Interessa(-me) mais o lado da possível permanência para além deste minguante presente que o lado do reconhecimento. Obrigado por vires aqui, ao Mar, Albino. Abraço. JJC