Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 1 de maio de 2010

Livros & LIberdade




Foi ontem a (anunciada) inauguração da Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. O momento, para além dos discursos da Directora do Instituto das Bibliotecas e do Livro, do Presidente da Câmara local e do Governador Civil de Vila Real, foi ainda ocasião para apontamentos poético-teatrais, a cargo de alunos da Escola E.B. 2, 3 / Secundária de Ribeira de Pena, sob minha orientação (e com o apoio das professoras Maria da Paz Carvalho e Sandra Leão).
Numa primeira parte, os alunos representaram “Explicação da Cúmplice Idade”, texto meu fundado numa espécie de anedota em verso que Júlio Dinis deixou no volume “Tentativas Poéticas”. Mais à frente, já durante o “Verde de Honra”, no lounge do Auditório Municipal, eu próprio e Emanuel Guimarães (com o apoio técnico de Marco Andrade) demos voz ao meu texto “Diálogo com Sentido”, fabricado para a ocasião e que a seguir se reproduz neste “Muito Mar”. Esta função terminou com uma dedicatória especial ao Francisco Botelho que, por merecer muito ali estar, não deixou de marcar presença na memória grata dos (outros) convivas.



Diálogo - com sentido - sobre livros e liberdade


- Diz aqui no programa que, depois da história das consultas e dos discursos, há um verde de honra…
- E é verdade. E bem bom que é o verde…
- Diz também que há um “diálogo com sentido, entre dois amigos” sobre a importância dos livros e, finalmente, uma canção interpretada por um coro de jovens ribeirapenenses…
- Diálogo entre dois amigos?
- Com sentido. Um diálogo com sentido.
- Entre dois amigos?
- Entre dois amigos.
- Amigos de quem?
- Amigos um do outro. Ou amigos da terra. Ou amigos dos livros…
- E quem serão eles?
- Eles quem?
- Os amigos…
- Sei lá.
- Cheira-me que estão atrasados. Se calhar, nem vêm…
- Seja como for, a inauguração propriamente dita já se fez.
- É verdade. Fica para a história: 30 de Abril…
- Abril… Esse mês diz-me qualquer coisa…
- É um mês bonito. Tem a ver com a Primavera, as flores, o renascimento da Natureza…
- Não só. É outra coisa. Uma coisa da nossa História…
- Ah! Deves estar a falar do 25 de Abril…
- O 25 de Abril?
- A revolução. Foi há 36 anos. Diz-se que é o “Dia da Liberdade”: Devias sabê-lo…
- Ai devia? Mas tu ainda agora disseste que foi há 36 anos. É muito tempo, tem lá paciência.
- De facto, é. Mas tratando-se da liberdade é sempre uma coisa de hoje.
- Não digo que não. Talvez seja. Embora…
- Duvidas do carácter sempre actual da liberdade?
- Não. Quero dizer, um pouco. Isto é…
- Estou espantado. Tu, um homem que toda a vida defendeu a liberdade, duvidas de uma coisa tão essencial?
- Mas repara, amigo: as datas são apenas números, acontecimentos algures no calendário. As coisas passam, como as modas.
- A liberdade não é uma moda. E, se fosse, não passaria nunca de moda. É sempre nova…
- Sempre nova?
- Sempre nova enquanto estamos vivos.
- Mas, escuta, se tu próprio dizes que, há 36 anos, não havia liberdade…
- E não…
- Então, posso deduzir que estávamos mortos antes do 25 de Abril?
- Estávamos quase mortos. Ou, se preferires, quase vivos.
- Quase mortos? Quase vivos? Desculpa lá, mas isso é tão absurdo como uma mulher dizer que está quase grávida.
- Acredito. Mas uma mulher quando quer muito ser mãe está quase grávida…
- Não percebo.
- Uma mulher, quando deseja muito ser mãe, já é um bocadinho mãe, antes mesmo de estar grávida…
- Talvez tenhas razão…
- Tenho razão. Com a liberdade é a mesma coisa…
- A liberdade é uma mulher grávida antes de estar grávida?
- Quando desejamos a liberdade, já somos um bocadinho livres…
- Ah! Agora, percebo. Acho que percebo.
- Vê. O 25 de Abril não nasceu no dia 25 de Abril. Começou no dia em que homens e mulheres sonharam com o 25 de Abril.
- Por isso dizes que a liberdade já existe quando existe o desejo de sermos livres…
- Por isso digo que já estávamos vivos antes de a liberdade chegar e nos livrar da condição de mortos…
- De modo que, em teu entender, valeu a pena inaugurar a biblioteca em Abril?
- Por acaso, acho que Abril é um bom mês para celebrar os livros…
- Mas eu julgava que os livros são para ler durante todo o ano…
- E são! Como a liberdade é para ser vivida durante todo o ano. Mas é preciso que, de vez em quando, nos lembremos disso…
- De vez em quando?
- Em datas certas. Em (como é que se diz?...) efemérides. Em dias que celebrem a alegria de viver em liberdade.
- Engraçado! Quem te ouvir julga que confundes as duas coisas: livros e liberdade.
- E confundo, sim. Isto é, vejo-as como uma coisa só. A liberdade é um livro sempre por abrir, por ler, por fruir…
- E um livro é o quê?
- É a própria voz da liberdade. Um eu, feito de muitos eus em diálogo com outros eus. Um eu do nosso tempo, e de todos os tempos, até do Futuro, dialogando com eus de hoje e de sempre.
- Mas, repara, há sempre livros fechados, não lidos…
- Um livro fechado é o contrário da liberdade. Mas a simples possibilidade de abrirmos, quando quisermos, um livro - é já a liberdade a funcionar.
- Sabes? Acho que tens razão. Mas a História está cheia de casos de destruição de livros. De gente que queima livros, autores, bibliotecas…
- É verdade. Há gente que não suporta a liberdade. Que prefere, digamos, a morte à vida. Há gente que não suporta a literatura, as ideias diferentes, o sonho, o ideal, as utopias…
- Mas isso prova que os livros são frágeis, que podem ser destruídos.
- Que são frágeis, sim. Os próprios homens são frágeis. A liberdade é frágil. Mas, como acontece com os homens, a liberdade não pode ser destruída!
- E, contudo, há livros queimados…
- Mas até esses são, nas cinzas que sobrevivem ao fogo, testemunhas da voz que eram. Até esses permanecem na memória de quem os tenha lido, na tristeza de quem não os pôde ler e na vergonha de quem, por fraqueza, os não suportou e os queimou!
- Acreditas, portanto, que não se pode destruir um livro?
- Pode (como te hei-de dizer?...) matar-se lentamente um livro.
- Como?
- Ignorando-o. Não o abrindo. Não o lendo. Fingindo que não existe. Virando as costas à vida que um livro é.
- Mas pode viver-se sem livros?
- Aparentemente, sim. O mesmo se passa com a liberdade. Diz-me tu: pode viver-se sem liberdade?
- Não bem. Segundo percebi no que tão bem explicaste, não se trataria, então, de vida realmente.
- Pois é assim também com os livros. Pode viver-se sem os livros, mas não se trata, nesse caso, de vida realmente.
- Trata-se de morte…
- Trata-se de não viver completamente, que é uma forma de morrermos antes de morrermos.
- Sendo assim, que vivam os livros, não é?
- É. Que vivam os livros!
- Então, olha, façamos um brinde à Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. Fala tu…
- Não. Fala tu.
- Fala tu. Hoje, estás inspirado…
- De facto, estou. É decerto por ser Abril. É pelos livros. É pela ideia de liberdade que parece florescer tão formosamente, hoje, no concelho de Ribeira de Pena.
- Vês? Eu não te dizia? Estás inspirado! Anda, faz lá o brinde… E rápido, porque o coro vai começar a cantar não tarda nada…
- Seja. Acompanhai-me, caros amigos. Que esta biblioteca viva por muitos mais anos que a soma das nossas vidas e as dos nossos filhos e netos! Que a qualidade de vida dos ribeirapenenses presentes e futuros cresça em informação, conhecimento, sabedoria e liberdade! E, já agora, que o Francisco Botelho, homem de letras e de liberdade, sorria algures no universo, orgulhoso de uma obra que ajudou a sonhar!
Saúde e Sorte!
(FIM)

Ribeira de Pena, já 1.º de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Ao diálogo seguiu-se a interpretação, por alunos e professores do Agrupamento de Escolas de Ribeira de Pena, do tema “Somos Livres”, de Ermelinda Duarte. Os últimos versos foram, por nós, levemente alterados: em vez de "Somos livres, somos livres / Não voltaremos atrás!", cantámos "Somos livres, com os livros / Não voltaremos atrás!".]

2 comentários:

mariadaserraverde disse...

Finalmente!
Fico feliz!
O Francisco ficaria (eu acredito que está!) feliz!
Afinal um sonho permanentemente adiado...
Mas a cultura em Ribeira de Pena tem em ti o seu guardião, o seu guia e mentor e, decerto que, agora que este sonho se cumpriu, outros sonhos (como o de tornar a biblioteca um espaço a regurgitar de vida na e para a comunidade)se perfilarão àvidos de também eles serem cumpridos...

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caríssima Ana,
sou muito cúmplice do que dizes, exceptuando - hélas - a minha dimensão ou papel de "guia" e "mentor". Eu "sou" da cultura, sim, como o Francisco Botelho, como tu, como outros; mas gosto da minha condição periférica e pontual, livre de obrigações e de formais contratos. Ribeira de Pena precisa de uma estrutura (de programas, planos, de uma equipa estrategicamente organizada, de meios), em primeiro lugar; depois, precisa de colaboradores - e é "aí" que eu, tendo disponibilidade, posso entrar.
Apesar de todos os constrangimentos, tenho esperança no que aí vem. A biblioteca e o auditório deverão ser aproveitados, com rigor, dinamismo e imaginação. Não há público? É preciso criá-lo, ir buscá-lo, educá-lo. As coisas levam tempo. Autarquia, escola e associações culturais (etc.) deverão entender-se.
Sabes, o Francisco Botelho não faz falta apenas a quem era seu amigo. Faz falta à terra. Ele tinha uma "visão" do que havia a fazer. Desejo sinceramente que outros "visionários" (como ele) ajudem Ribeira de Pena a encontrar lugar para os livros e a cultura. Eu estarei cá (enquanto estiver) para fruir-aplaudir e, de vez em quando, colaborar.
Beijinho, Amiga!
JJC