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Número de Ondas

domingo, 16 de maio de 2010

A Oficina Literária (Fábula)



1.
Era uma vez um homem que tinha uma livraria. O homem era filho de um conhecido comerciante e de uma costureira. Antes de o homem ter uma livraria, os seus pais haviam mantido um bem diferente negócio numa cidade pequenina, junto ao mar: uma loja de roupas que fornecia também serviços de ajustamento ou reparação de peças de vestuário (ali compradas ou não).
Até à reforma, a loja fora um sucesso, mas o filho do casal formara-se entretanto em letras e preferira investir no negócio dos livros.
Não obstante terem pena, os pais venderam a loja e financiaram uma livraria.
Inspirado pela experiência profissional da filiação, o herdeiro decidiu que, além da venda de literatura, aquele espaço comportaria um serviço de reparação de livros com defeito. Mas tinham de ser livros comprados na sua loja, porque o homem era ainda solteiro e não podia estar a ocupar-se de todas as peças defeituosas do universo literário.
À secção de reparações de livros avariados chamou, sem grandes investimentos de imaginação, “Oficina Literária”.
A história que aqui se conta aconteceu logo ao segundo dia de funcionamento deste serviço.

2.
Numa manhã fria de Março, aí pelas dez horas, duas pessoas chegaram, praticamente ao mesmo tempo. A primeira era uma mulher de talvez 40 anos, de olhar triste: trazia um sucesso editorial de certa autora muito elegante que ganhava a vida a escrever histórias que supunha originais. A segunda era um homem de talvez 30 anos, cheirando a perfume caro: trazia um opúsculo esverdeado de um poeta português do século XX.
O dono da livraria (e da oficina literária) começou por atender a mulher. Perguntou:
- Minha senhora, qual é o problema com esse livro?
- Nem sei explicar bem. Talvez tenha a ver com o título … - respondeu ela.
- Os títulos podem ser enganadores – lembrou o homem.
- Talvez. Mas como falava em amor, sabe, eu achei que não poderia tratar-se de engano…
- Deixe-me ver.
O homem, então, leu uma, duas, vinte e quatro páginas e, já convencido da avaria reportada, disse:
- Tem razão. É um problema de fabrico. O livro tem defeitos irreparáveis. Tecnicamente, trata-se de um problema de vacuidade literária…
- Mas – contrapôs a mulher – o livro parece bom. Tem palavras, tem uma história…
- Histórias e palavras nem sempre chegam para se fazer um livro, minha senhora. Falta aqui o mais importante – disse o homem.
- O que é? – perguntou a mulher.
- Não lhe posso dizer – respondeu o homem.
- É segredo? – tornou a mulher.
- Não exactamente. É (como é que lhe hei-de dizer?) uma questão de alma e de linguagem. É difícil de explicar, na literatura, o que falta quando algo falta, mas nota-se facilmente que algo falta quando nos pomos a ler com olhos de ler.
- E então?
- Então, vou dar-lhe um vale literário na importância do objecto que comprou, acrescida de dez euros de indemnização. Com este vale, a senhora pode comprar um livro que esteja em condições.
A mulher aceitou, agradada da amabilidade e competência do atendimento.

3.
Despachada a primeira cliente da oficina literária, seguiu-se o senhor perfumado.
- O meu problema é o mesmo daquela senhora – avisou.
- Nenhum problema é igual a outro – garantiu o dono da livraria. – Faça o favor de expor a sua situação.
O senhor perfumado explicou:
- Eu chamo-me Rui Merrick. Tenho este nome estrangeiro porque o meu avô era inglês.
- Muito prazer – disse o dono da loja, estranhando a apresentação.
O senhor perfumado continuou:
- Digo-lhe o nome porque a primeira coisa que me encantou no livro foi o nome do autor: Rui como eu.
- Rui Merrick? – admirou-se o dono da loja.
- Rui Belo. Rui com y. Ruy – precisou o senhor perfumado.
- Ah! – exclamou o dono da loja, sorrindo. – Conheço. É um grande escritor.
O senhor perfumado encolheu os ombros, céptico.
- Talvez seja. Mas o título dizia “O Problema da Habitação” e eu, que estou há mais de quinze anos no ramo imobiliário, achei que fosse um livro sobre casas.
- De certa forma, é… – considerou o dono da loja, procurando encontrar palavras que explicassem o funcionamento de uma metáfora.
- Perdão! - interrompeu-o o senhor perfumado. – Não há aqui nada sobre casas. Aliás, tanto quanto percebi, não há aqui nada sobre nada. É um conjunto de palavras incoerente. Falta-lhe (deixe ver se lhe explico isto bem) comunicação.
- Compreendo – suspirou o dono da loja.
- Ora – continuou o senhor perfumado – um livro tem de comunicar, não é verdade?
O dono da loja, um pouco nervoso, dissertou sobre o assunto com esforçada bonomia:
- Para comunicar, caro cliente, é preciso que haja mais do que um elemento. Comunicar é sobretudo um diálogo.
Mas o senhor perfumado parecia zangado com o tom tautológico da exposição. Sem mais palavras, passou o livro para as mãos do dono da loja, e deu em tamborilar com três dedos (o anelar, o médio e o indicador) sobre o balcão de atendimento. Tirando esse batuque impaciente, sucedeu na loja um silêncio embaraçoso que durou uns quinze segundos.
- Então? – perguntou depois o senhor perfumado. – Não me vai ressarcir do prejuízo?
O dono da loja guardou o livro, foi à caixa registadora e devolveu ao cliente o exacto valor que este gastara.
O senhor perfumado contou o dinheiro e perguntou:
- Por que não me deu, em vez disto, um vale literário?
E, lembrando-se de um pormenor importante, perguntou também:
- E por que não tenho direito aos dez euros de indemnização?
O dono da loja, já não nervoso, disse-lhe com sereníssima bonomia:
- O defeito, neste caso, não está no livro. Está no leitor. Lamento, caro senhor, mas a minha oficina não está habilitada a tratar do seu caso. Muito bom dia.

FIM

Ribeira de Pena, 16 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este conto foi escrito em Coimbra no dia 9 de Abril de 2010 e lido (de forma dramatizada) no dia 22 de Abril, por mim e pelos meus colegas Olívia Sofia Coutinho, Jorge Magalhães e Telmo Bértolo, durante a sessão “Café & Letras” levada a efeito pelo Agrupamento de Escolas do Arco, no âmbito da celebração do 1.º aniversário da nossa Biblioteca. As ilustrações-supra são da autoria da colega Rosário Coelho.]

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