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Número de Ondas

sábado, 22 de maio de 2010

O Outro


Roberto Bolaño, chileno, falecido em 2003, é o autor de um fenómeno de vendas intitulado 2666 (obra que é em verdade um conjunto – coerente – de cinco romances), que li no mês passado. Li 2666, digo-vos, como quem entra numa infinita floresta encantada e perigosa de mais de mil páginas. Um grande livro grande.
Na semana passada, graças ao meu cunhado Conceição (que tem vindo a comprar o que há em Portugal deste romancista), pude ler também O Terceiro Reich, editado pela Quetzal. Trata-se também de um romance espantoso, contado de forma vertiginosa, cheio de cor local e de abismos psicológicos. Mas o que, neste curso espaço blogueiro, queria dizer sobre o livro é um pormenor de toda a importância neste jogo intemporal de escrever e de ler. Dir-vo-lo-ei nos últimos três parágrafos.
Ao longo de 46 trechos (como páginas de um Diário, ou de um esboço de Diário), estamos perante certa história passada com o narrador e a namorada, em férias numa praia de Espanha. Aí encontram outros habitantes da intriga e da diegese, num contexto de convívio nem sempre seguro e aprazível, eivado de algum mistério e, finalmente, de adivinhada tragédia. O relato dos acontecimentos cruza-se com um estranho jogo de sociedade denominado “Terceiro Reich”, espécie de monopoly e batalha naval em versão mais sofisticada: o jogo funda-se na própria circunstância histórica e geográfico-temporal dos anos 40 do século XX, e permite a vitória ao jogador mais hábil (representante dos aliados ou do exército nazi).
O narrador (não o autor, note-se) da história é alemão e tem como adversário – feroz, determinado, obcecado com o triunfo – um enigmático indivíduo, vítima de Hitler e do nacional-socialismo. Algumas personagens, à roda do alemão, avisam dos perigos de jogar “aquele jogo” com adversário tão perigoso e talvez letal.
No final do romance, vemos como o narrador, na sequência da derrota, se resigna a uma espécie de inevitabilidade: morrer às mãos do oponente.
Mas não é isso que sucede: o castigo que o vencedor (pelos aliados) impõe ao alemão é tão-só trocar, por momentos, de lugar, de ângulo, de perspectiva. Para que do lado de cá (junto ao mar, no desconforto humilde da areia, do frio e do lento marulhar das embarcações), por algum tempo fique o narrador, ali misturado com a paisagem habitualmente vista da janela do seu hotel, no conforto do quarto.
Que melhor castigo para o derrotado daquele Reich de brincar?
A literatura consiste, em grande medida, nisto mesmo: obrigar-nos a ver um problema (um assunto, um universo, uma pessoa, um jogo) pelo outro lado.
O outro lado, aqui, quer dizer o lado do outro.


Coimbra, 22 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

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