Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 9 de maio de 2010

Contra o escarro


Fernando Pessoa (em versão Bernardo Soares), insuspeito amante da Língua Portuguesa, chamou às imperfeições da escrita - às ortográficas e decerto às sintácticas – “escarros na página”. A expressão é feia, mas correcta, pois designa uma realidade feia.
Não me arrogo a autoridade linguístico-judicativa da voz pessoana, mas compreendo bem este seu desassossego, este seu nojo, esta sua visceral dor.
Não me deterei, nesta croniqueta rápida, na questão da pronúncia correcta ou da esquecida Dicção. Na rádio, na tv, nas ruas, nos fóruns político-partidários, nos futebóis de todas as divisões, fala-se mal e porcamente, e cada vez pior. Certa tia, há poucos dias, glorificava o Algarve (ou “Allgarve”), um lugar “xelente” onde ela tinha “tado” há dias, um destino “fant-tás-tic-co, pe’cebe?”, “muito melhor qu’ir paspanha”.
Há pior. Todos os dias, em contexto de trabalho ou de lazer, identifico erros que são, em sua substância, uma espécie de nova gramática, gémea do escarro que Pessoa denunciou e cunhou.
Há poucos dias, ouvi o senhor Zeinal Bava (que ganha, num dia, o que a minha mãe não ganha num ano, ou o que eu não ganho num mês), a garantir que “o Estado não interviu”, em vez de “não interveio”, erro que – anos antes – ouvirá já, no “Prós e Contras”, ao então ministro da Educação, David Justino…
Hoje mesmo, ouvi a (formosa) deputada do PSD, Carla Rodrigues, num programa da, salvo erro, RTPN, deixar cair uma feia nódoa no seu fluente e correcto discurso sobre a Comissão de Inquérito ao caso TVI: disse que “se houvessem circunstâncias” em vez de “houvesse circunstâncias”…
Na zona onde trabalho (Minho, Trás-os-Montes), farto-me de ouvir a conjugação errada do conjuntivo do verbo “dar”. Por exemplo, frases como “Quer que eu lhe deia uma sugestão?”, em vez de “Quer que eu lhe dê uma sugestão?”, aparecem na boca de alunos, pais, professores…
Igualmente vejo, aqui, instalada a confusão entre o pretérito perfeito da segunda pessoa do singular e o pretérito perfeito da segunda pessoa do plural. Exemplo: “tu tivestes” (em vez de “tu tiveste” ) e vós tivésteis” (em vez de vós tivestes”)…
Ao escritor-apresentador José Rodrigues dos Santos não o ensinaram ainda que a frase “o homem tinha morto a companheira” está errada; deveria utilizar, neste caso, o particípio passado regular, “matado”.
Ao entrevistador-cronista-escritor Miguel Sousa Tavares deveriam explicar, como aliás aos falantes lisboetas em geral, que não há razão válida para substituir o particípio passado regular “encarregado” pelo particípio passado irregular “encarregue”. Exemplo: “O governo tinha encarregado a Direcção Regional do Norte”, e não “O governo tinha encarregue a Direcção Regional do Norte”. Conheço alguém que, sobre isto, a rir-se, diz que ainda havemos de ver convocatórias de directores de turma a chamar à Escola os “encarregues de educação”…
Finalmente, na minha Coimbra, tem vindo a reproduzir-se, com a velocidade de um vírus, a expressão “está aponte” ou “fica aponte”, em vez de “fica apontado” (anotado) ou “está apontado”. Por algum tempo, ainda pensei que o fenómeno tivesse a ver (não “a haver”, notai) com a proliferação de pontes na beira litoral: a Ponte de Santa Clara, a Ponte Rainha Santa Isabel, a Ponte do Açude, etc. Mas não. Este escarro decorre, ao que parece, da emergência espontânea de um novo particípio passado irregular: o dito “aponte”, em vez do inditoso “apontado”.
Adivinho gente que, lendo-me, se irrite com esta militância purista. Talvez lhes apeteça utilizar um argumento muito em voga na contemporaneidade: que a Língua é uma coisa viva, e por isso temos de tolerar as variações, a “evolução”.
Eu tenho uma resposta para esses que, sem vergonha, me atiram à cara que a Língua é uma coisa viva. Ofereço-vo-la.
A Língua é uma coisa viva, sim. É por isso que eu a defendo: para que não a matem!
É isto, senhores, o que eu penso. Se quiserdes, tomai nota. Já está “aponte”?

Coimbra, já 09 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em www.wook.pt.]

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por este "post". Tive que consultar para ver se era eu que estava errado.