segunda-feira, 10 de maio de 2010
Inês & Laranjas
No dia em que o Estado português matou Inês de Castro, talvez um homem chamado João da Póvoa estivesse, desde manhã cedo até à tardinha, junto à porta da igreja de Santa Cruz. Se o homem existisse, seria vendedor de fruta e, nesse dia em que se soubera, em surdina, da morte da galega formosa, ele estaria a comerciar laranjas.
Entre a manhã e a tarde, o homem enxotará vários mendigos do saco da fruta, importunará donzelas do povo que passam, em trapos, a caminho do rio, será insultado por velhas beatas que vêem no preço das laranjas pecado mortal e, entre dois copos de vinho, numa casa baixa ao fundo da Rua Direita (a que vem da estrada de Lisboa em santa direcção à igreja), saberá por outros que D. Fernando e alguns nobres assassinaram a amante de D. Pedro.
Sem lirismos, porque desconheciam essas delicadezas do espírito e da fala, os homens ali presentes recordam o cabelo loiro da mulher, os seus olhos claros, as formas generosos do seu colo e das suas ancas.
João da Póvoa estivera, certa manhã, muito próximo dessa mulher e pudera até sentir, evolando-se da pele feminina, uma espécie de cheiro a muitas flores. Ouvindo-o apregoar as suas laranjas, a bela interrogara-o, com um sorriso trocista:
- Tens a certeza de que são laranjas?
- Conheço-as de antes ainda de serem nascidas, senhora – assegurara ele. – Fui eu que as plantei e as colhi.
Inês engelhara, suspeitosa, o delicado nariz:
- Pelo aspecto, mais depressa diria que eram limões, homem.
As duas outras damas, que acompanhavam a espanhola, riram-se muito. E João da Póvoa, sorrindo também, decidira oferecer uma, duas, três peças daquela fruta.
Apesar do mau aspecto, as laranjas eram doces como as semelhantes dos Algarves. E Inês reconhecera-o:
- É certo que, por detrás do aspecto mais feio, há muitas vezes doçura escondida. Vende-me dois sacos: o primeiro irá connosco para Santa Clara; o outro distribuirás pelos infelizes que além nos estão mirando com indisfarçada gula.
Assim se fizera, lembra-se João. E mais recorda a tarde em que, numa das margens do Mondego, divisara o príncipe caminhando, de braço dado, com Inês. Imagem difícil de esquecer, pois concentrara o sol todo desse dia longínquo, e o vendedor de laranjas julgara perceber, então, na serenidade dos passos e na adivinhada alegria de murmúrios e risos, uma profecia de felicidade a haver para os namorados.
Mas Inês era morta já.
De modo que, pensa o homem (e talvez o diga aos co-bebedores daquela tarde), pode dar-se com a felicidade o mesmo que sucede com a fruta: não se mede o sumo pelo aspecto da casca.
Coimbra, ainda 10 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra (da Quinta das Lágrimas) foi colhida, com a devida vénia, em http://sol.sapo.pt.]
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