sexta-feira, 7 de maio de 2010
A razão da chuva
Tenho andado a reler, no intervalo das Pupilas, da Família, da Morgadinha e dos Fidalgos, a diarística de Torga.
Os textos deste escritor transmontano (aliás, universal) estão cheios de um tortuoso amor por Portugal (terra e gentes) misturado com uma, às vezes truculenta, amargura face à ignorância, à pobreza de espírito e à venalidade dos habitantes do país e do planeta.
Aquilo que, lido abstractamente, seria uma contraditória forma de ver-perceber o mundo explica-se, em minha opinião, pela própria natureza genológica dos diários: são estados – momentâneos – de alma, telegramas do instante, (des)apontamentos dos seus dias.
Por mim, gosto sobretudo de reconhecer nos seus textos certa toponímia familiar (da minha existência litoral e também transmontana): Coimbra, Mira, Peso da Régua, Lamego, S. Martinho de Anta…
Também me sucede reconhecer, em figuras que o autor encontrou algures, personagens do meu pessoalíssimo e hodierno quotidiano. É o caso de uma velha, conterrânea de Miguel Torga, que comenta determinado dilúvio ocorrido na primeira metade do século XX. A criatura, com recurso a litanias religiosas e a aforismos, diz que a chuva resulta dos caprichos de Nosso Senhor, mas depois acrescenta:
“- Que ele há quem diga que são as nuvens…”
Há dias, num Café da vila onde resido a maior parte da minha vida, um homem lamentava “a crise”, isto é, este nosso tempo em que “não há dinheiro”. Como no caso da velha do Torga, sucedeu a esta generalidade discursiva uma pausa e, depois, uma sensata descida ao chão das coisas:
“- Que ele há quem diga que o dinheiro existe; está é mal distribuído…”
Coimbra, ainda 07 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
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