Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Entrevista que o João de Mancelos me fez em 1996



Em Fevereiro de 1996, o João de Mancelos, ilustre professor universitário de Literatura e interessantíssimo escritor (visitar http://www.joaodemancelos.wordpress.com), fez-me uma entrevista - dada à estampa em Latitude, suplemento Cultural do jornal O Aveiro, ed. de 07-02-1996. Foi pouco depois de eu ter publicado, em Coimbra, um livrinho de poesia, Desapontamentos dos Dias (Coimbra, Ed. A Mar Arte, 1995).
Dei com o texto dessa entrevista há dias e, depois de (gratamente) me “rever” em muitas das respostas dadas, decidi publicá-la em “Muito Mar”. Chamo a atenção para a circunstância de algumas das observações feitas estarem inevitavelmente datadas e, em alguns casos, desactualizadas. É o caso, por exemplo, da referência triste ao facto de Daniel Abrunheiro permanecer, então, inédito. Isso já não é, felizmente, verdade. É ainda o caso da referência ao Independente, histórico semanário que então vivia, cheio de saúde, e que entretanto faleceu.
As questões de João de Mancelos partem, normalmente, de citações do volume Desapontamentos dos Dias (daí o uso de aspas).


João de Mancelos: “O futebol e a poesia são outra vez fáceis”. Quando te acontecem os poemas?
Joaquim Jorge Carvalho: Todos os poemas, os que escrevo, os que leio, os que me doem, e os que me aquecem, já aconteceram. Eu actualizo-os em mim. Em registo diferente, Almada Negreiros fala do facto delicioso e perturbador de estarem já inventadas as palavras que salvarão o mundo; e lembra que falta apenas salvar o mundo! A escrita é quase sempre um milagre (de segundos, ou de horas, ou de dias) de hipersensibilidade, de capacidade de ver, de perceber, de emergir do caos. Por instantes, num desequilíbrio lúcido e bonito, há em mim (como, por certo, em tantos outros, coitados!) a ilusão de saber tudo pela primeira vez; de amar como nunca e como mais ninguém; de chorar por mim e por Camilo (ou por Gaitinhas de Soeiro) de modo essencial e redentor; de ser feliz ou infeliz profundamente e para sempre. Tudo isto tem a ver com os olhos, o sangue e os dedos, e com a noite, com os cafés e os comboios da cidade, com a solidão e o mar. O que acontece, não são poemas. Sou eu, perdidamente, a salvar o mundo e a salvar-me. Sublinho: perdidamente.

JM: “E a tua vida dá corda à minha escrita”. Que(m) te inspira?
JJC: Tenho, às vezes, uma febre maldita e urgente de dizer, de criar, de registar uma ideia, uma pulsão, um grito, uma graça, um balanço. É uma febre maldita e bela, porque dela resulta a escrita que é, pobre de mim, a única coisa em que acredito mesmo, na auditoria optimista que faço à minha vida e aos meus caminhos. Eu escrevo, acho, para me tornar mais bonito, mais forte e mais interessante, aos olhos dos outros e, sobretudo, de mim próprio. Isto pode não ser, afinal, politicamente correcto, mas é assim! Desde miúdo, por exemplo, sofro a violenta angústia do tempo passando, da vida que se escoa inexoravelmente, da minha Mãe-bela se tornar Mãe-velha. A escrita é um pouco o exorcismo desta noção violenta e bruta, a navegação contra a corrente do calendário, eu a gritar de saudade de todo o tempo e de todo o mundo que me vai fugindo. Esta resposta não fala de “musas” porque não há musas. A verdadeira musa só existe quando não existe. Aliás: só existe porque não está, porque faz falta. É esse o motivo por que um dos meus poemas se chama “dedicatória não”.

JM: “Devo-te este poema há cem anos”. Desapontamentos dos Dias é uma estreia com maturidade. Por que aguardaste tanto tempo para publicar em forma de livro?
JJC: A pergunta é generosa, mas parte de um pressuposto pouco verdadeiro. A minha estreia, em termos de publicação, não é uma “estreia com maturidade”. Se eu tivesse maturidade suficiente, não publicaria ainda. A publicação deste livrinho (os Desapontamentos) é uma extraordinária violência, por tudo o que implica de selecção, hesitação, medo, vaidade e mimo, medo outra vez, vertigem (estúpida e lúcida) do ridículo, etc. A única grande e verdadeira vantagem de publicar este primeiro livro é esta: já ter publicado o primeiro livro. E poder ir agora enganando cuidadosamente as pessoas: pior que isto, em verdade, não me verão publicar!

JM: “Esta cidade é doida”. És um autor que vive e labora na província. Para a tua recente obra, haverá vida depois da sessão de autógrafos? Como tencionas divulgá-la?
JJC: Tratando-se de uma tiragem modesta, o esforço de divulgação e concomitante venda não se me afigura particularmente hercúleo. Ressalvo, contudo, que a publicação, em Abril, correspondeu ao interesse da editora A Mar Arte, de Coimbra, e à calendarização dos seus projectos (que são vários). Teria sido mais fácil para mim publicar entre Outubro e Dezembro, visto ser esta, em meu entender, a melhor altura para elaborar, junto de escolas, autarquias e instituições de carácter artístico-cultural, um esquema de apresentação e promoção do livro. Mesmo assim, pude participar em dois eventos interessantes neste âmbito, onde esse desiderato foi satisfatoriamente atingido. Devo dizer que, de algum modo, através de jornais, revistas, até da televisão (graças à generosidade do Carlos Pinto Coelho, apresentador do magazine cultural “Acontece”, na RTP 2), o livro foi razoavelmente divulgado. A este esforço espero poder acrescentar, em breve, o obséquio de apreciações críticas de alguns nomes interessantes da nossa praça.

JM: “O tempo de eu ser é agora”. Estás ligado a actividades diversas, na área do desporto, do teatro e, sobretudo, do jornalismo. Conta.
JJC: Sou professor do ensino secundário e, neste âmbito, orgulho-me de desenvolver, com alunos e colegas, várias actividades de carácter extra-curricular, que valorizam a escola e a nossa vida. Assim, no teatro (já fui autor, actor e encenador nos últimos quatro anos) como no Jornalismo (pátria feliz do acontecimento, da reflexão e da escrita), tenho procurado investir tempo e esforço (de mim próprio e dos outros) na busca de instantes bonitos e gratificantes. “Poesis” (fazer, fazer coisas). Em termos pessoais e privados, tenho vindo a escrever crónicas semanais para jornais e rádio. É um exercício interessante porque me obriga a determinado tipo de produção escrita (opinativa, crítica, confessional), com carácter periódico e mais ou menos inevitável. E está algures implícita a mágica generosidade das pessoas que perdem tempo a ouvir-nos e a ler-nos, a seguir-nos, enfim, o olhar e o raciocínio. Ah!, é verdade: também me divirto a jogar futebol, uma paixão de sempre (que já levei mais a sério), cujo protagonismo prático se vem deslocando, às ordens de Cronos, dos pés para os olhos…

JM: “Li o Independente enquanto não vinhas”. Se fosses para uma ilha deserta, que jornais levarias contigo (para além do Latitude, obviamente).
JJC: Se fosse para uma ilha deserta, que jornal?! O do dia seguinte, naturalmente. Por razões de ética leitora, recuso-me a confessar a minha preferência pelo Público, Independente, Expresso, Bola e o JL. E muito menos citar o Pedro Rolo Duarte, na falecida K, que dizia, sobre o assunto “jornais”: “o Público é o melhor, o Expresso é o maior, e o Independente é o mais importante”.

JM: “Soube que a palavra nasce no meio / De outras árvores, de outros frutos”. Um livro de cabeceira, um filme de culto, um disco tocado e retocado, um pintor que se admira… Fala-nos dos teus gostos.
JJC: Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão e Amor em Tempos de Cólera. Camilo, de perdição. Eça, todo! E ainda Faulkner, Twain, Beauvoir, Pessoa, Joyce, Sophia, Eugénio, Daniel Abrunheiro (meu amigo, nunca publicado!), David Lodge, Guerreiro de Sousa, Salinger, Kundera. E um imenso ETC! Sobre filmes, dificuldade quase igual: Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, O Império do Sol, de Spielberg, O Último Imperador, de Bertolucci, Aniki Bobó, de Manuel de Oliveira, O Clube dos Poetas Mortos, de Peter Weir, O Senhor das Moscas, de Harrison Hook, etc. Música: Pink Floyd (e outro etc.). Pintura: Picasso (quando percebo, quando penso que percebo e quando não percebo). Devo confessar, já agora, que sou muito pouco educado em matéria de pintura e de escultura, o que me torna um ingénuo à mercê do cânone e do instinto.

JM: “As ruas de Coimbra estão sujas / De versos e de cascas de tremoços”. O academismo conimbricense incomoda-te?
JJC: Não há um academismo conimbricense; há várias maneiras de entender e protagonizar uma carreira e um trabalho académicos. Algumas dessas maneiras são saudáveis e bonitas; outras, não. Recomendo, sobre estes últimos casos (que existem!) a leitura atenta e feliz de Woody Allen (Sem Penas, Para acabar de vez com a Cultura e Não bebas dessa Água).

JM: “O Silêncio: dir-te-ei tudo no próximo verso”. Ideias na manga e projectos na cartola.
JJC: Vou andar preferencialmente sem mangas nem cartola. Desesperadamente à procura de coisa nenhuma. A ler e a escrever. A namorar. E (já agora) vou tentar acabar a minha tese de Mestrado. Estou a responder a estas perguntas com a perna direita engessada, do pé até à virilha, literalmente, devido à lesão ligamentar no joelho. Este gesso é físico e metafórico: sou eu a convalescer e a acreditar na convalescença; e sou eu preso, impaciente, insatisfeito e brusco. Há sempre um gesso qualquer na minha vida de jogador, de namorado e de poeta. Sempre.

[A 1.ª das fotos-supra é do professor João de Mancelos. A segunda é de um momento feliz que vivi em Lisboa, há cerca de dois anos, quando recebi, das mãos de Manuel Carvalho da Silva, o 1.º Prémio do Concurso de Conto da CGTP. A minha narrativa (mais uma novela do que um conto, sublinho) intitulou-se Teresa – Relato Cuidadoso de um Excessivo Amor e foi publicada no ano passado (Lisboa, Ed. CGTP, 2009).]

5 comentários:

Calendas disse...

E quando não escrevemos bem ficamos mais feias aos olhos dos outros?

Poça pá, é por isso que a barriga me cresce dia após dia e as rugas teimam em aparecer.

Nunca mais escrevo! Já podias ter avisado!

rmiranda disse...

É tão importante ouvir a Pessoa que és sem gesso no carácter, no pensamento e nas palavras libertadoras que te transmitem!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Dear Anabela, tomo o teu desabafo como ironia. A verdade é que talvez haja algo de ridículo nesta nudez de uma entrevista aqui (re)exposta...
O que ali quis dizer foi... o que ali está.
Quanto a ti, que escreves bem (e que sabes que escreves bem), que dizer senão o que já bem sabes? Que, para quem vê na escrita parte importante de si, isso de "não escrever bem" (se isso acharmos do que escrevemos) significa "não escrever", e portanto dever de apagar, ou burilar, depurar.
Não se aparece brutamente à pessoa amada: queremos agradar, preparamo-nos, tentamos estar "à altura". O leitor é essa pessoa, de certa forma.
Nisto de blogues, a pressa inviabiliza, às vezes, a qualidade literária (mea culpa). É um risco.
Beijinho.
JJC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Rosa,
obrigado pelas tuas palavras.
É uma honra ter-te por aqui, neste Mar.
Beijinho.
JJC

Anabela disse...

Estava a brincar com a tua expressão quando escrevi o comentário. Sempre gostei e já tinha lido a entrevista, daquela frase. Já pensei, inclusive, muito nela e gosto dela.

Quanto a mim e creio também que deve ser por isso que não me importo nada com o acordo ortográfico, as palavras escritas são apenas um veículo de comunicação. Vivo muito bem sem escrever, não preciso disso para nada. O que não posso é deixar de falar. É por isso que tenho um blogue, para falar com os outros, já que ao vivo nem sempre é possível. Não vejo as palavras como algo sagrado, um templo, ou o que seja. Mudem-nas, se quiserem, a toda a hora, mas digam-me o código. É quanto me basta.

Bjs