Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 30 de abril de 2011

Livro havido, livro a haver


Cumpre-se, hoje,dia 30 de Abril de 2011, uma etapa mais da minha biografia pessoal e literária. Um livro sai para as mãos de gente como eu e, quando (e se) se der o milagre do encontro que a leitura é, as minhas palavras escritas acrescentar-se-ão à linguagem de cada leitor e à particularidade de cada leitura. Não só, porém: também ao que eu entrevi-sugeri-enunciei se hão-de somar a visão, a inteligência e a sensibilidade de diversas pessoas (elas próprias diversíssimas).
Um livro tem o sentido que o autor sonhou para a criação, mais os sentidos que cada viajante leitor lhe descobrir-oferecer.
O livro, enfim, faz-se do que li (em outros livros e na minha vida) e do que alguns magníficos outros emprestarem, de si próprios, ao texto.
Leitores, Amigos: ajudai-me a fazer este livro!

Ribeira de Pena, 30 de Abrio de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.desertosedeserificacao.blogspot.com.]

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Serenidade


Uma brisa morna percorre a tarde-noite. O planeta, sentido daqui, é um lugar de amável serenidade. Há ainda, nesta hora do ocaso diurno, a lembrança boa de um dia bom.
Pergunta: Então como vamos?
Resposta: Menos mal. Bem. Vivos.

Ribeira de Pena, 28 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura (de Degas) foi colhida, com a devida vénie, em http:://www.um-buraco-na-sombra.netsigma.pt.]

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Um Barco Chamado Sophia Loren


No próximo dia 30 de Abril, se fosse vivo, o meu pai completaria 73 anos.
No próximo dia 30 de Abril, a Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena comemora o seu primeiro aniversário e lança, na ocasião, um livrinho meu intitulado Um Barco Chamado Sophia Loren. O livro será apresentado pelo meu Amigo Daniel Abrunheiro, Jornalista e (grande) Escritor.
Fica aqui o convite a quem tiver tempo e paciência para tal: a cerimónia começa às 15h30m, com a representação de uma peça por alunos ribeirapenenses (texto e encenação da minha responsabilidade). No final, a Câmara Municipal oferece um "Verde de Honra".
Aguardo, com grata ansiedade, esse dia provavelmente formoso.
O meu Pai faz 73 anos e vai, creio bem, lá estar.

Arco de Baúlhe, 28 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Mia Couto, Tradutor de Chuvas


Não sou um grande entusiasta da literatura de Mia Couto, mas reconheço-lhe – sem remédio - uma invulgar habilidade no manuseamento plástico da língua.
Uma amiga emprestou-me, por uma manhã, um livro de poemas deste biólogo moçambicano, com um belo título: Tradutor de Chuvas(Lisboa, Ed. Caminho, 2011.)
Respigo, do interessante voluminho, alguns versos dignos de nota:
Na página 9, do poema “Saudade”: “Que saudade / tenho de Deus.” (Ecoa aqui um poema de Ana Luísa Amaral – “Nostalgia – / Saudade de Deus.”)
Na página 12, do poema “Clandestino”: “Não era o amor / que eu procurava. Buscava o amar.” (Ecoam aqui uns versos de Pessoa: “Amo como o amor ama. / Não tenho motivo para amar-te mais que amar.”)
Na página 19, do poema “Falas de Uns”: “O homem faz amor / Para se sentir bem. // A mulher faz amor / Quando se sente bem.”
Na página 44, do poema “Pecado muito pouco original”: “Não foi despudor. / A mulher se vestiu, sim, para ser eterna.”
Na página 48, do poema “Flores”: “[…] só a semente / oferece flores.”
Na página 65, do poema “Sazonais Eternidades”: “A saudade / é o que ficou / do que nunca fomos.”
Na página 71, do poema “Sementeira”: “O poeta / faz agricultura às avessas: / numa única semente / planta a terra inteira. // […] Afinal, / não era a palavra que lhe faltava. // Era a vida que ele, nele, desconhecia.”
Na página 80, do poema “Medos”: “Medo do amor / quando tudo é fome. // […] E morrermos / de tanta eternidade.”
Na página 93, do poema “Declaração de Bens”: “Uma única certeza / demora em mim: / o que em nós já foi menino / não envelhecerá nunca.”
Na página 99, do poema “O Homem sem Janela”: “[…] Sou o homem sem janela: / o mundo está sempre do lado de cá. // […] É então que chegas, / e eu, enfim, regresso / para dentro de minhas paredes. // Só então tenho janela.”
Na página 101, do poema “Mudança de Idade”: “Agora sei: / apenas o amor nos rouba do tempo.” (Ecoam aqui uns versos de Eugénio de Andrade: “Abracemo-nos, amor, / contra a morte.”)

[Nota: Os ecos poéticos que evoco no texto são citações feitas de cor.]

Arco de Baúlhe, 28 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.abarca.com.]

Sonos, sonhos


“[…]pois / ver não é habitar / o espanto de as coisas serem?”
(José Tolentino Mendonça, “”Dos olhos de Rubliev”, in A Noite Abre os Meus Olhos, 2010.)



Os meus sonos andam há muito tempo em fuso diferente das horas solares.
Com os meus sonhos não é assim. Tudo quanto na vida admiro, desejo, me (en)leva, garanto-vos, tem o fogo e o brilho do astro-rei.
Os meus sonos são doidos. Os meus sonhos também. Mas estes distinguem-se daqueles por acreditarem na melhor luz do mundo.

Ribeira de Pena, 27 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da Praia de Mira, esse pedaço de geografia mítica) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.flickr.com.]

terça-feira, 26 de abril de 2011

Cesário, Deus, o Minho


1.
Vale sempre a pena voltar a Cesário Verde. Nunca como na sua poesia se torna tão nítida a distinção entre olhar e ver. A escrita, pelos versos do tal poeta que anda pela cidade a obsevar-sentir-avaliar os dias humanos, funda-se numa visão simultaneamente física e estética.
O poeta vive, vendo o que vive.
Vê, vivendo o que vê.
Como todos os que são dignos da condição de (grandes) poetas, Cesário vivê.

2.
Numa reportagem televisiva, ao mesmo tempo que mostra a sua casa degradada, a humidade e o bolor tão visíveis, a falta de recursos económicos, a velhinha com sotaque do norte dirige-se directamente ao jornalista:
“É como o senhor vê…”
Às vezes, apetecia-me que Deus fosse Ele próprio um jornalista por aqui em reportagem, querendo indagar, junto de mim, o que se passa. Eu havia de lhe falar nos grandes partidos e suas clientelas que se servem do país para satisfação dos umbigos egoístas; das conquistas de Abril que, às mãos de politiqueiros de pacotilha, se vão perdendo, embrulhadas em retórica neoliberal e cínica; da obediência dos Estados aos pançudos da finança internacional; da degradação da confiança nos governantes; da corrupção; da brutalidade de um sistema que permite todas as mordomias a uns poucos - e todos os sacrifícios à maioria. E talvez rematasse a minha exposição, dirigindo-me directamente ao Divino Repórter:
“É como o Senhor vê…”

3.
O Minho, por alturas de Abril, é uma fulgurante paleta de cores e formas. Penso, no durante do regresso rodoviário a Ribeira de Pena, que bastaria um pouco de vento para esta paisagem se animar como um bailado russo.
E o vento (aliás, brisa) vem mesmo, roçando-se pelas casas, pelos automóveis, por gentes e montes. Durante uns dez minutos, árvores, flores e pássaros, dançando nos ares, acrescentam uma espécie de coreografia olímpica que mais nenhum espectáculo no mundo poderia, às quatro da tarde desta terça-feira, oferecer-me.

Ribeira de Pena, 26 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.arcodebaulhe.olx.pt]

Não parar (para) não morrer


Faço-me ao instante como ao mar -
Entro no barco e sei da sorte
Do vivo navegante, se voltar:
O cais (mas já não este) em vez da morte.

Coimbra, 25 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.imotion.com.br.]

segunda-feira, 25 de abril de 2011

25 de Abril de 2011


Eu tenho em cassete áudio (dessas que parecem, aos hodiernos adolescentes, material pré-histórico) uma gravação do álbum “FMI”, do José Mário Branco.
Reouvi a peça há pouco tempo. Ingenuamente me parecera, aí por 1995, um documento datado. Mas não.
Quando olhamos para a obesidade do regime, 37 anos depois de 1974; para as obscenas diferenças entre ricos e pobres; para a corrupção impune dos poderosos; para o cinismo e a hipocrisia das panças que nos governam – não podemos senão gritar, como o bardo louco de “FMI”: Ó Mãe! Ó Mãe! Ó Mãe!
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PS: Houve esse pormenor de se ter conquistado a liberdade; e o de se ter alargado a educação e a saúde a todos; e o de se ter acabado com a guerra colonial; e o de se ter acabado com a PIDE. De modo que, apesar de tudo, 25 de Abril - sempre!

Coimbra, 25 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 24 de abril de 2011

Notas urbano-bucólicas


Um milagre qualquer da sazonalidade cobriu de prata as folhas de choupos antigos. É assim que, pelas quatro horas e vinte e cinco minutos desta tarde morna, a tanta vegetação erguida tremeluz à minha passagem. Compro dois sacos de pão na pastelaria de S. Miguel (um para levar à minha mãe; outro para minha casa) e, com vagares de rei, apodero-me de tudo quanto à minha volta existe. O presente, digamos assim, presenteia-me de si.
Sou de momento tão feliz quanto um saco de perdas pode, enquanto ainda vivo, ser.
A minha mãe está a ver a RTP Memória quando a visito. É aquele, desde há uns dois anos, o seu canal preferido. Percebo-a bem. Eu próprio gosto de ali residir por um ou dois episódios de Alf ou Cheers, por exemplo.
Dezassete horas, brilha ainda a tarde. Enquanto corro, ali pelas imediações do hipódromo, aborrece-me pensar que estou quase de partida.
Vou deixar, uma vez mais, Coimbra minha. Mas Coimbra não me deixa nunca. Nunca.

Coimbra, 24 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geocaching.com.]

sábado, 23 de abril de 2011

Arte de interpretar um rio


O Mondego é uma parte
Da habitual paisagem.
Corre o rio e a viagem
É um destino que a arte
D’ interpretar a imagem
(Como todo ou como parte)
Percebe como passagem
De Agora para o Porvir:
Tu és nós, Mondego, a ir.

Coimbra, 23 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.chica.ilheu.blogs.sapo.pt.]

Uivo em carris


Pela ponte do Açude um (ainda) quarentão corre contra a morte. Uma patine cinzenta embrulha a tarde, avulsos automóveis interrompem o feriado, o rio corre como se nunca tivesse feito outra vida.
Depois, até ao túnel antiquíssimo da Estação Velha, a corrida é uma solidão ainda maior. Não há senão o homem trotando em contramão e a chuva hesitante desta Primavera crítica. Entretanto, um cheiro pestilento anuncia a visão terrível, quase na cortada do Choupal, de um cadáver canino apodrecendo sobre a erva da berma.
Um uivo de comboio sobrepassa este encontro.
O homem corre sempre, sempre. Não já o cão lá atrás.

Coimbra, 23 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cnpgb.inag.pt.]

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Coimbra ao centro


Coimbra é, ao entardecer, uma espécie de aguarela e a gente faz parte da beleza inteira do que vê.
Três dias chegaram para regressar à minha condição de ser daqui.
De estrangeiro, agora, apenas mantenho o estranhamento olhador e a pureza (inventada) de um encontro primeiro.
Amo a minha cidade, apesar da esclerose industrial que nela grassa; apesar da doutorice que mentes gordas por aqui ostentam ou procuram; apesar da canalhice paroquial que cheira pior se vista de perto.
A ideia de sair de Coimbra, ainda uma vez, é o meu drama de emigrante contrariado.
Para onde vou, sei bem, não é o meu lugar.
Sobrevivo só por acreditar que, no estrangeiro para onde vou, há também gente, lugares, nuvens de cumplicidade que me devolverão, por momentos mágicos, à minha Coimbra essencial.

Coimbra, 23 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.crisita.blogspot.com.]

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Mundo metáfora do mundo


1. Como diria o chileno Skármeta (em O Carteiro de Pablo Neruda), o mundo é - ou pode ser - metáfora do próprio mundo. E não é que, nos últimos dias, dois factos do meu quotidiano me ajudaram a enunciar mais uma lei sobre a condição humana? Partilho aqueles, partilho esta.
2. Encontrei o meu amigo Fernando, da Relvinha. Conversámos sobre a vida, o futebol, a memória, pais e filhos, futuro. A meio do encontro, vi-lhe um sorriso mundial na boca e nos olhos; foi quando me falou de um neto que era “um espectáculo”. Confessou-me, com singeleza, esse milagre que é reviver por obra e graça dos que amamos.
3. Foi nesse mesmo dia que o meu telemóvel 91 ficou sem bateria e descobri a falta do carregador respectivo. Deixei o aparelho em Ribeira de Pena e, até ao meu regresso a Trás-os-Montes, o telemóvel por aqui permanecerá silencioso, provisoriamente morto.
4. Todo este tempo sem carga é, para o telefone, uma interrupção da vida, um lapso de nada.
5. Assim o nosso tempo também, sem uma energia que ciclicamente nos alimente, nos ressuscite, nos salve de inexistir.
6. O Fernando muito vivo e o telemóvel morto ensinaram-me uma verdade fundamental, irmãos: o Amor é o nosso carregador do Tempo.

Coimbra, 22 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Verso com Brilho


Como dizer da coisa bela o brilho visto?
Como pôr em verso esse brilhar?
Não sei dizer de si melhor que isto:
Uma luz beijando levemente o mar.

Coimbra, 20 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.anitta baroc.blogsapo.pt.]

terça-feira, 19 de abril de 2011

Rua de Mim


Os lugares da felicidade são raros e breves.
Voltar a um destes lugares é muito raro, senão impossível. Quando os procuramos, o que encontramos é quase sempre pó, cimento ou ruínas: a rua da minha infância, por exemplo.

Coimbra, 19 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://i57.photobucket.com.]

Desmesura


A desmesura da Beleza mede-se por ausências: palavras que faltam, territórios do pensar e do sentir não ditos à míngua de como dizê-los. A Beleza sobra sempre às tentativas de a fazer palavra. Há sempre em si um lado que nunca acaba nunca acaba nunca acaba.

Coimbra, 19 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (de - adivinhai! - Gwyneth Paltrow) foi colhida, com a devida vénia, em http://evilbeetgossip.com]

Crise


Quase em surdina, a moça daquela repartição pública garantia ao colega do guichê da direita:
- Já vi… Menos cinquenta Euros…
Ele (o colega) atende-me, com mal disfarçado nervosismo. Resmunga quase imperceptivelmente:
- Estás a brincar…
Ela suspira, carregando entretanto (em retirada) uma caixa para o arquivo.
- Antes estivesse, pá…
Ele dá-me um documento a assinar e pensa (ouço-o muito bem na minha cabeça, leio muito bem o seu sobrolho carregado):
- Filhos da puta! Ladrões!

Coimbra, 19 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://4.bp.blogspot.com.]

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A Ideia de Reconhecimento


Já Steiner chamara a atenção para essa palavra tão mal percebida no ruído do mundo: reconhecimento. É uma palavra plurissignificativa, e em todos os sentidos que pode ter, atentai, há profundidade e humanidade. Recordo, por razões de clareza expositiva, virtualidades semânticas deste vocábulo tão formoso:
a) pode significar "gratidão";
b) pode significar "conhecer de novo";
c) pode significar a identificação, no presente, de algo ou alguém que já conhecemos (conhecíamos) no passado.
Em termos de literatura, a palavra reconhecimento compreende muitas e preciosas dimrensões.
George Steiner defende (salvo erro, em Presenças Reais, ou em entrevista a Ramin Jhanbegloo) que decorar textos nunca é tempo perdido. Mesmo no caso de uma criança. Quem aprenda um poema de cor sem alcançar o seu sentido profundo, terá de qualquer modo uma magnífica experiência - o contacto com o ritmo, a melodia, a música do enunciado. E um dia, talvez, reconhecerá o valor (de sentido, sentidos) do que um dia aprendeu de cor. A vida, digamos assim, ensiná-la-á até a entender aquele poema que, fisicamente, já fazia parte de si.
Reencontrei esta ideia de reconhecimento em Hermann Hesse. O narrador de O Jogo das Contas de Vidro conta uma experiência da personagem Knecht, que envolve:
a) a ideia convencional da Primavera (estação do ano que sucede ao Inverno e antecede o Verão);
b) uma composição de Schubert ("Die Linden Lüfte sind erwacht") sobre esta transformação sazonal, vista de um ponto de vista espiritual e estético;
c) a percepção individual e física de Knecht do fenómeno (através da visão, do olfacto, do tacto, da audição).
Subitamente, a personagem do romance de Hesse compreende o inteiro alcance da música de Schubert - e reconhece, de modo cósmico e sublime, o sentido inteiro desta metamorfose regeneradora que em Fevereiro ou Março exprimentou in vivo.
[Curiosamente, o narrador defende a intransmissibilidade desta experiência; sustenta, em alternativa, a possibilidade de a comunicar. Estes dois conceitos - transmitir, comunicar - reúnem-se, em minha opinião, no exercício estético da leitura/interpretação.]

Os gregos inventaram, também, uma bela palavra que, muito a montante deste meu rio retórico, compreendia já a essência (literária e outra) de reconhecimento: reminiscência. Em termos brutalmente sucintos, reminiscência representa esta ideia de, um dia, no passado anterior à nossa existência, termos estado em contacto com a Beleza, a Verdade, a Pureza. Mais tarde, ocorrem episódios na nossa vida real em que, por instantes, ascendemos a patamares de plenitude. Vibram então, em nós, cordas familiares. Uma espécie de música, digamos assim, preenche esses momentos elevados. E nós reconhecemo-la, reconhecidos.

Coimbra, 18 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 17 de abril de 2011

Há muito, muito tempo


1. Sábado, dia 16 de Abril, onze da manhã. Estaciono junto ao Campo da Arregaça, do Clube de Futebol União de Coimbra. Vou ver o jogo União - Pedrulhense. Adepto, desde criança, do União, estou hoje do lado dos da Pedrulha, porque é nesta equipa que milita o António, meu sobrinho e (bom) médio ofensivo. De qualquer modo, um espectador avulso diz que o clube da Arregaça está a morrer
2. Sob a luz inclemente do sol, semicerro olhar e atenção ao jogo: subitamente, o ano é 1977, sou o número nove do União de Coimbra e estou a jogar contra o Ançã Futebol Clube. Ganhamos nove a zero e o quarto golo é meu. Junto à baliza, o meu pai e o meu tio Toni lacrimejam, orgulhosos. O campo, ao contrário do que constato no presente, estava quase cheio.
3. No dia 15 de Abril, levantei em Coimbra o meu primeiro “cartão de cidadão”. No momento de receber o novo documento, o meu velho bilhete de identidade (que tinha uma foto de mim mais novinho) cruzou-se, sobre o balcão, com o novo (que tem uma foto de mim mais velho). Vi, com piedade, o modo arrogante como o primeiro olhava para o segundo.
4. O crescimento da cidade parece que, a todo o momento, engolirá este campinho da Arregaça onde passei tantas horas de felicidade (quase nunca consciente da irrepetibilidade do que estava vivendo). O meu sobrinho jogou bem, mas foi goleado. Enquanto eu cumprimentava o António, quatro adeptos do União de Coimbra, do outro lado da bancada, aplaudiram os vencedores. Um espectador avulso diz que o clube da Arregaça está a morrer.
5. Mas não é só o clube da Arregaça.

Coimbra, 17 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto de 1979 ou 1980: eu capitão dos juniores do Clube de Futebol União de Coimbra.]

sábado, 16 de abril de 2011

Sobre olhar


Se te olho, não te olho, antes navego
No mar que me pareces, se te olhar.
Sou por ti incerto barco e sigo, cego
Da luz tão excessiva que há no mar.

Coimbra, 16 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[O esboço deste poeminha data de 2006. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ignorancia.blogspot.com.]

Anedota com sapatos


Centro comercial, um casal sessentão, fim de tarde.
Ela lamenta-se:
- Vi algumas mulheres com sapatos como eu queria...
Ele (um brilho filho-da-mãe nos olhos):
- Eu também.
Ela (desconfiada):
- Tu também?
Ele (o filho-da-mãe do brilho nos olhos de lobo reformado):
- Pois. Vi algumas mulheres como eu queria.
Ela (indignadíssima):
- Como tu querias?
Ele (filho-da-mãe):
- Com sapatos, filha. Com sapatos.

Coimbra, 16 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.efacec.pt.]

Lua precoce


Cedo da minha janela
Vejo já a lua bela
(‘Inda não são seis da tarde) -
Fugiu de casa a donzela?
Não tem mãe que cuide dela?
Não tem um pai que a guarde?


Vila Real, 14 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.laleonarde.blogspot.com.]

Narrativa com busto e filosofia


Certo sábio consagrado
De grandes escritos e feitos
Vivia obcecado
Por mulheres de grandes peitos.

Em Capodécia, morava
A doce Núria que a custo
Todo o dia carregava
Um apetitoso busto.

Bela Núria desprezava
A beleza masculina:
Dizia que só casava
Com homem de mente fina.

Esta mamuda imponente
(A maior de Capodécia)
Quis homem inteligente
E lá foi casar à Grécia.

Não era belo o esposo
E houve quem lamentasse
Que homem tão horroroso
Com esta mulher casasse.

Mas o filósofo ria…
(Homem mais feio dos feios)
Do casamento dizia:
“Eu só sei que nado em seios!”

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Céu de poeta


Uma estrelinha atravessa o céu, escondendo-se como pode dos olhares e das vozes vizinhas.
Mil outras estrelas são ali exclamações de luz e de festa.
A estrelinha foge do ruído, porque há nela aquele sufixo de timidez e de fragilidade. Procura, diligente e silenciosa, um canto esconso na periferia do firmamento.
Mas à sua volta é a noite, que é o contrário de si.
Vive, logo, brilha. Logo, é percebida.
De estrelinhas assim se faz o céu de um poeta com medo do escuro.

Ribeira de Pena, 14 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:www.echacara.bolg.uol.com.]

Escrever mais do que eu


Escrevo o que eu sinto, mas na escrita
Há a filosofia pessoal
De um eu que por si passa de visita
E vê em si um eu universal.

Ribeira de Pena, 14 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.1.bp.blogspot.com.]

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Os Famosos Mercados


(Com um abraço para o Paulo Pinto, meu estimado colega e cúmplice desta graça trágica na Sala de Professores da nossa Escola!)


Mercado Municipal Engenheiro Silva - Figueira da Foz. Asdrubalina Assunção, vendedora de fruta e legumes:
«Tanto o governo como a oposição, meu senhor!... Tanto desconfio de uns como de outros!»

Mercado Municipal D. Pedro V – Coimbra. Maria da Paixão, peixeira:
«O Sócras é um troca-tintas. O Coelho não sabe o que quer. Estamos lixados e bem lixados…»

Mercado do Bolhão - Porto. Rufino Santos, ardina e sócio de uma banca de fruta:
«Já não voto há umas três eleições… São todos iguais, pá!»

Mercado da Ribeira, Lisboa. Gabriela Fontes, estudante de Enfermagem:
«Só há emprego para os amigos deles… Não tenho nenhuma confiança nos políticos, acredita?»

Comentário:
Confirma-se o que, quase todos os dias, os jornalistas e opinion makers da nossa praça vêm dizendo - há hoje uma indiscutível desconfiança dos Mercados…

Ribeira de Pena, 13 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Mercado do Bolhão) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jpn.icicom.up.pt.]

terça-feira, 12 de abril de 2011

3 Quadras com Beleza pelo meio


De pouco se faz a beleza
De quase nada o encanto
Mas dói tanto a chama acesa
A chama acesa dói tanto.

Tão pouco é o que seduz
Tão suave é esta calma
Mas queima tanto esta luz
Acesa na minha alma.

Morre o sol em fim de tarde
E o meu olhar de veludo
Não bem de tristeza arde
Mas da dor de sentir tudo.

Ribeira de Pena, 12 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho.
[A imagem (Gwyneth Paltrow como “Ema” em As Mulherzinhas) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.4.bp.blogspot.com.]

Ode ao Verso


Mágoa, água, dor, alento
Força, farsa, ouro, ourives -
Como um breve e leve vento
Leve e breve, Verso, vives!

Arco de Baúlhe, 12 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:www.epitafios.blogspot.com.]

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Viver, contar, viver


Gabriel García Márquez, um dos maiores vultos de sempre em matéria de narrativa, escreveu um livro intitulado Viver Para Contá-la. "Contá-la", precise-se, como quem diz "contar a vida".
A ideia do escritor colombiano foi revelar, enquanto era tempo (i.e., antes de morrer), alguns dos aspectos fundamentais da sua biografia pessoal e literária.
A maior "lição" que retive dessa obra foi esta coisinha singela de ser necessária uma absoluta e exclusiva dedicação à literatura para se ser realmente escritor. A mim, confesso, falta-me esse pundonor fundamentalista - e não sinto sequer remorsos.
Mas tenho em comum com Márquez essa ideia de dedicação constante, fiel, grata à causa da escrita (e da leitura). Igualmente concordo com a tese inscrita no título: a vida é o maior e melhor barro para esculpir qualquer obra literária.
Permito-me acrescentar uma nuance: a de que também se conta para (se) viver, pois a vida à nossa disposição é demasiado curta para o volume do amor e da imaginação que a condição humana exige para, verdadeiramente, ser.
De modo que, remato, se a biografia de Gabriel García Márquez tem o nome tutelar de Viver para contá-la, a sua narrativa ficcional poderia, por seu turno, abrigar-se sob o tecto (concomitante ao anterior) de Contar para vivê-la.

Ribeirta de Pena, 11 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.institutocamoes.pt.]

domingo, 10 de abril de 2011

E no entanto move-se


No conclave do Partido Socialista em Matosinhos, 2,8 por cento de congressistas votaram contra a moção de José Sócrates.
Eu há muito que penso que seria bom para Portugal e para o PS o afastamento daquele (respectivamente) primeiro-ministro e secretário-geral.
De modo que vejo, daqui deste Muito Mar, os 2,8 por cento como uma imensa multidão de lucidez.

Ribeira de Pena, 10 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é a de Galileu Galilei, colhida - com a devida vénia - em http:www.arestasdevento.blogsapo.pt.]

Ironia nobiliárquico-capitalista


Vinha no JN de sexta-feira, dia oito de Abril: o casal Beckham (o futebolista e a ex-Spice) queriam matricular os filhos num colégio inglês muitíssimo elitista. Desconfio, aliás, que essa característica - o crivo elitista na admissão de alunos - terá sido determinante para a opção dos mediáticos pais.
Ora, a verdade é que, apesar de David & Victoria possuirem meios para as colossais mensalidades do colégio, houve um movimento de outros pais que, sabendo da vontade dos Beckham, se insurgiram contra tal. Apresentaram um argumento arrasador. Repito-o aqui, nesta croniqueta: apesar de ricos e famosos, o papá e a mamã Beckham não estão, aparentemente, ao nível exigido pelo colégio. Porquê? Sentai-vos e sabei: porque continuam a pertencer, de qualquer modo, à "working class"!
Deus Nosso Senhor tem um sentido de humor do tamanho da sua infinitude. E serve-se dos mais sofisticados truques dramáticos para nos fazer rir e, atenção, pensar.

Ribeira de Pena, 09 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://bonciz.com.]

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ideia que nos defende


Posto que a terra em sua translação
Determina o inverno a seguir ao estio
E que o pior da velhice é a solidão
(Esse quase-fim cínico, bravio;
Esse gelo bruto, essa perdição)

O amor é uma ideia que nos defende do frio.

Ribeira de Pena, 08-04-2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (do filme Cocoon) foi colhida, com a devida vénia, em http://vovodelicia.wordpress.com.]

Roedores


Era uma vez um homem reformado e viúvo que, por gostar tanto de ler, se esqueceu de cuidar da higiene própria e da casa.
Ao fim de alguns meses de obsessiva dedicação à leitura, a casa era um antro de odores e de lixo espalhado por corredores, quartos, cozinha, sala, biblioteca.
O que mais lhe custava era a quantidade de rataria com que sempre se cruzava, de dia ou de noite, e sobretudo o ruído que os roedores faziam devorando restos de comida ou livros.
Aos ratos que pastavam no lado da biblioteca, chamava “inteligentes”; dos outros dizia que eram “a turba”. Esta discriminação estendia-se, até, à hora da morte dos hóspedes: quando encontrava um qualquer sobre o lava-louças, na cozinha sebenta, o homem murmurava com notório desprezo: “Viveste estupidamente e morreste estupidamente, meu nabo!”
Quando encontrava um rato jazendo numa prateleira da estante, saudava-o com uma espécie de cúmplice entusiasmo: “Ah, meu maganão! Consolaste-te antes de morrer, hein?…”
E, folheando um livro velho muito degradado, ali a um palmo do roedor falecido, acrescentava: “ Comeste-me os doze trabalhos do Hércules e o episódio do Ciclope!”

Ribeira de Pena, 07 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://cristina-projecto1.wikispaces.com.]

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Música & Cores


Se à contemplação
Do Poeta criador
Sempre sucedesse uma canção
Ou uma flor -
Que complexas melodias
Que campos cheios de cores
Seriam os seus dias
Seus amores.

Vila Real, 06 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (da actriz Kim Basinger) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mielofon.com]

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Beleza


A beleza o que é, como se faz?
Que misterioso, em nós, interruptor?
Que coisa nos acende, no-la traz?
O que é o amor?

Ribeira de Pena, 06-04-2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (Gwyneth Paltrow, a minha actriz favorita) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.imagensdeposito.com.]

terça-feira, 5 de abril de 2011

O perigo da ignorância


"Imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efectividade, indivisibilidade" - eis as fundamentais características dos Direitos Humanos.
Grande parte dos ditadores do mundo é inculta e dificilmente percebe o sentido destas palavras (alguma difíceis até de pronunciar e escrever).
Isto é, a ignorância é mesmo um perigo para a humanidade.

Ribeira de Pena, 05 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem supra é a do quadro de Picasso, Guernica.]

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Besame mucho


Toda a gente conhece aquela hipérbole, entretanto devinda clichê, cunhada por certa canção espanhola: Besame mucho / como se fuera esta noche la ultima vez...
Quando, uma vez ainda, me lembro da minha última conversa com o meu pai, o sangue daquela canção pulsa renovadamente.
Talvez esta minha mágoa encerre alguma lição universal. Talvez fosse preciso que, em tantas ocasiões, nos ouvíssemos como se essa fosse a última vez. Talvez fosse preciso que, em tantas ocasiões, nos olhássemos como se essa fosse a última vez.
Nunca mais o meu pai me atenderá o telefone. Nunca mais lhe reprovarei, ali na sua exacta e física presença, o ventre exagerado ou o sorriso de miúdo com que justificava os seus excessos. Mas não falei consigo, na última vez em que consigo falei, como se aquela, que foi a última vez em que falámos, fosse a última vez em que falámos.
Eu há muito tempo que olho para o presente como uma antecâmara de perdas. O que temos, o que somos - tudo, senhores, é uma espécie de pétala delicada condenada ao fim. Por isso me habituei, entretanto, com mal disfarçado susto e mal disfarçado desespero, a ver-ouvir os meus contemporâneos (por enquanto) vivos como se fosse, sempre, a nossa última vez.
E, já agora, o que aparece neste Muito Mar deve ser lido, para benefício da própria leitura, como se cada texto fosse o último escrito ou lido.

Ribeira de Pena, 04 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Na foto supra, aparece Consuelo Velásquez, autora (em 1940) da canção "Besame mucho".]

Mão velhinha


À volta do Centro de Saúde de Ribeira de Pena, há uma árvore que desistiu da primavera. Adiam-se-lhe as folhas. Os pássaros ignoram-na. Os troncos, vistos de baixo, assemelham-se a uma mão desesperada, gritando a Deus por um milagre qualquer.
Ao passar por ela, sinto uma profunda pena de mim.

Ribeira de Pena, 03 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 3 de abril de 2011

Atenção, Televisão & Literatura




1.Os benefícios da atenção
Todos os dias aprendemos, claro. A vida surpreende-nos e acrescenta-nos de conhecimento sobre a vida. Não entendo esse fenómeno como mero acaso. Parte-se sempre, como diriam (entre tantos) Tolentino Mendonça ou Caeiro, da atenção; mas depois é preciso que haja pasto em nós para essa avulsa semente dar flores ou frutos, e de estas deveniências gratamente se integrarem na paisagem universal do que doravante sabemos. Ontem, por exemplo, beneficiei de uma história contada pelo actor Ruy de Carvalho a Daniel Oliveira (no programa Alta Definição, da SIC); de uma reportagem com o escritor Howard Jakobson, vencedor do Booker Prize de 2010 (na RTP); e da leitura de umas trinta páginas (não mais porque a seguir dava o Real Madrid - Sporting Gijon na Sportv) do romance O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse. Deixai que vos fale um pouco do que aprendi.


2. O Palhaço da Zona do Petit Palais
Conta Ruy de Carvalho que um psiquiatra francês, famoso em meados do século XX, estava preocupado com a falta de resultados dos tratamentos num determinado paciente. O doente era muito complexo e sofria de profundos problemas, apresentando –a cada nova consulta -um quadro de depressão extrema e inalterada. Em desespero, o psiquiatra lembrou-se de um palhaço que, desde há meses, aparecia na zona parisiense do Petit Palais e conseguia, com suas histriónicas diatribes, pôr toda a gente a rir. Recomendou-o, pois, ao seu paciente mais difícil. Este, à proposta, reagiu com um misto de bonomia e de tristeza:
- Senhor doutor, esse palhaço sou eu…

Não tem tanta arte esta biografia?

3. A natureza essencial do romance
O escritor britânico Howard Jakobson, explicando o seu ofício de romancista, diz ao repórter que tinha um objectivo fundamental: entreter os leitores. Aparentemente, portanto, a ideia de arte literária deste laureado não se distinguirá da concepção merceeira que alguma mediocridade lusa também professa e cultiva (falo de Rebelo Pinto, de Rodrigues dos Santos, de Sousa Tavares, etc.)… Mas o inglês acrescenta, graças a Deus: trata-se de um entertainment diferente do comum, um "highest entertainment”, que ponha as pessoas a pensar profundamente, a chorar ou a rir com sentido. Traduzo livremente: um entretenimento sublime. E já estamos, aleluia, de acordo, cúmplices de Camilo, Eça, Dinis, Saramago. (E, claro, a corja que não presta não cabe nisto.)

4. Tese & Antítese
Em O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse (tradução de Carlos Leite, Lisboa, Ed. Publicações Dom Quixote, 1999), ao topo da página 16, um simples período glosando uma máxima (talvez inventada pelo autor) ajuda a explicar todos os perigos que a intolerância e o fundamentalismo comportam:
“Há um velho aforismo que diz: quanto mais agudamente e intransigentemente formulamos uma tese, mais irresistivelmente ela clama pela sua antítese.”

Na política, na família, na profissão, no amor, continua a revelar-se interessante e útil a leitura dos clássicos.

Ribeira de Pena, 03-04-2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[As fotos de Ruy Belo, Howard Jakobson e Hermann Hesse foram colhidas, respectivamente (com a devida vénia), em http://www.poroutraspalavras.wordpress.com, http://www.4.bp.blogspot.com e wikipédia.]

Quadra com lábios


Lábios sábios estão fadados
Para incendiar desejos
E deixam nos beijos dados
Vontade de novos beijos.

Vila Real, 02 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ainda o Sol


Primeiro de Abril soalheiro e quente. Pela avenida há já femininis evidências do calor e da luz: braços destapados, ombros emancipando-se de pudores involuntários, um fecundo decote, coxas libertando-se da longa hibernação.
Ele chegou. Ele chegou!
Infiltra-se pelos arredores da íris, ao primeiro olhar. Espalha-se pelo território cutâneo que vai do pensamento aos passos. Entra-nos no sangue pelo oxigénio bebido do dia. Fica connosco. Imortaliza-nos provisoriamente. Faz parte de nós.
Temos sol. Temos sol!

Arco de Baúlhe, 01 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho


[A imagem (lapso da rua do Carmo, metonímia para a coimbrinha Visconde da Luz e outras formas de paraíso) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruasdelisboacomhistoria.blogspot.com.]

Ares do Tempo


O ar do tempo lê-se em simples pormenores do quotidiano. As modas, o jargão, a mentalidade consensual, o vestuário, a literatura de sucesso, a arquitectura, as canções.
Que tempo é o nosso?
Confesso, senhores, que a minha percepção do presente, apesar de fugazes glórias com sol e lábios, é pouco positiva. Por exemplo...

Terá lugar em Barcelos, no próximo dia 9 de Maio, a final do Concurso Nacional de Leitura - fase distrital. Lendo o regulamento da prova, dois pormenores me saltaram à vista (e ao coração). Digo-vo-los:
a) em caso de empate, os alunos serão convidados a responder, oralmente, a várias perguntas; ganha quem for mais rápido a responder...
b) o Júri será constituído pelo Dr. Victor Pinho (bibliotecário), Manuela Ascensão Correia (professora) e Capucho (ex-futebolista, treinador de futebol).

Em a), leia-se a ditadura da pressa, da esperteza (mais do que da inteligência ou da sensibilidade).
Em b), leia-se o pior que há na nossa contemporaneidade e, in casu, no Plano Nacional de Leitura - o de se confundirem as aparências (mediáticas) com a essência (mediúnica) dos livros.

Uma tristeza, o nosso tempo.

Arco de Baúlhe, 01 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho