Já Steiner chamara a atenção para essa palavra tão mal percebida no ruído do mundo: reconhecimento. É uma palavra plurissignificativa, e em todos os sentidos que pode ter, atentai, há profundidade e humanidade. Recordo, por razões de clareza expositiva, virtualidades semânticas deste vocábulo tão formoso:
a) pode significar "gratidão";
b) pode significar "conhecer de novo";
c) pode significar a identificação, no presente, de algo ou alguém que já conhecemos (conhecíamos) no passado.
Em termos de literatura, a palavra reconhecimento compreende muitas e preciosas dimrensões.
George Steiner defende (salvo erro, em Presenças Reais, ou em entrevista a Ramin Jhanbegloo) que decorar textos nunca é tempo perdido. Mesmo no caso de uma criança. Quem aprenda um poema de cor sem alcançar o seu sentido profundo, terá de qualquer modo uma magnífica experiência - o contacto com o ritmo, a melodia, a música do enunciado. E um dia, talvez, reconhecerá o valor (de sentido, sentidos) do que um dia aprendeu de cor. A vida, digamos assim, ensiná-la-á até a entender aquele poema que, fisicamente, já fazia parte de si.
Reencontrei esta ideia de reconhecimento em Hermann Hesse. O narrador de O Jogo das Contas de Vidro conta uma experiência da personagem Knecht, que envolve:
a) a ideia convencional da Primavera (estação do ano que sucede ao Inverno e antecede o Verão);
b) uma composição de Schubert ("Die Linden Lüfte sind erwacht") sobre esta transformação sazonal, vista de um ponto de vista espiritual e estético;
c) a percepção individual e física de Knecht do fenómeno (através da visão, do olfacto, do tacto, da audição).
Subitamente, a personagem do romance de Hesse compreende o inteiro alcance da música de Schubert - e reconhece, de modo cósmico e sublime, o sentido inteiro desta metamorfose regeneradora que em Fevereiro ou Março exprimentou in vivo.
[Curiosamente, o narrador defende a intransmissibilidade desta experiência; sustenta, em alternativa, a possibilidade de a comunicar. Estes dois conceitos - transmitir, comunicar - reúnem-se, em minha opinião, no exercício estético da leitura/interpretação.]
Os gregos inventaram, também, uma bela palavra que, muito a montante deste meu rio retórico, compreendia já a essência (literária e outra) de reconhecimento: reminiscência. Em termos brutalmente sucintos, reminiscência representa esta ideia de, um dia, no passado anterior à nossa existência, termos estado em contacto com a Beleza, a Verdade, a Pureza. Mais tarde, ocorrem episódios na nossa vida real em que, por instantes, ascendemos a patamares de plenitude. Vibram então, em nós, cordas familiares. Uma espécie de música, digamos assim, preenche esses momentos elevados. E nós reconhecemo-la, reconhecidos.
Coimbra, 18 de Abril de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
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