segunda-feira, 24 de maio de 2010
Ler Fotografias
Durante uma noite quase inteira, estive a ver fotografias de família. Era uma espécie de arca carregadinha de álbuns e de avulsos rectângulos a cores ou a preto e branco e, a princípio, andei por ali como quem só está de passagem. Mas, como acontece com certos frutos (denotativos ou simbólicos), acabei por me demorar, entregue à volúpia característica dos vícios.
Vi lugares que nunca mais me viram. Revi rostos que são já definitivamente outros (e isto inclui o meu). Vi vivos que mudaram de condição. Vi a minha mãe, num sítio onde nunca pude estar, sorrindo com esperança no futuro. Vi cães, saltitantes personagens da minha infância, que já morreram. Vi casas onde estive e onde a vida era tão novidade. Vi o meu pai vestindo-se à pressa, com ar maroto, junto a nós, muito longe de imaginar a sua ausência à nossa roda. Vi a minha filha tão antes de ser demasiado grande para trazer ao colo. Vi a minha namorada num degrau da casa madeirense onde talvez lesse as minhas cartas de seduzir.
Deitei-me quase de madrugada, aflito como quem perdeu subitamente o pé na profundidade do tempo. Custou-me a adormecer. A minha mulher perguntou-me se eu estivera a ler, e eu disse-lhe, sem mentir, que sim.
Gosto de fotografias, isso é certo. Parecem-me muitas vezes mais vivas que eu olhando-as. Tantas vezes, é como se reconhecesse a minha verdadeira vida naquela imobilidade de ontem.
Coimbra, 24 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
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8 comentários:
Tão cedo a publicação de hoje?! Provavelmente devido à noite passada a ler fotografias.
De facto, é uma opção, Anabela. Em vez da quase férrea disciplina dos primeiros três meses do "Muito Mar", passo a publicar quando (e se) puder-quiser.
Isto enquanto o bloguinho não falecer(já esteve mais longe).
Beijinho.
JJC
Não deixes morrer o mar onde eu (e outros...)venho procurar as palavras para a alma sentida e entorpecida de tantos sentimentos que respiram bem no teu dizer!
É engraçado ler isto porque estava precisamente a dar uma olhadela nos comentários do meu e, mais uma vez me perguntei a razão de manter um blogue. Já disse muitas vezes e repito, não preciso nadinha de escrever, não pretendo notariedade nenhuma e nem sequer escrevo nada de jeito. Já comecei uns 3, todos de características diferentes e nenhum me dá ou deu um prazer especial. Com ele ocupo tempo que poderia aproveitar, por exemplo, para a leitura que me é muito mais especial. Acho que o faço porque me habituei a comunicar desta forma com algumas pessoas que conheci através do mesmo.
Como para si é, inclusive, doloroso não escrever, deixe-nos gozar as suas palavras e não acabe ainda, porque os seus livros são muito difíceis de encontrar. Não nos retire ainda esse prazer. Este blogue tem poucos meses e está quase com 8000 visitantes, alguma coisa quer dizer, não? Entenda-o como um serviço público. Não sei como entende a filosofia deste blogue, mas, provavelmente, se os que passam por aqui comentassem o que lêem, para si seria mais recompensador. No entanto, compreendo-os, porque a qualidade é tanta que é muito difícil comentar. A mim, por exemplo, intimida-me um pouco comentar aqui. Preocupo-me se o discurso é coerente, se há gralhas, e muitas vezes nem sei mesmo o que dizer, para além da frase feita. Vou-me. Beijos.
Ah, aquela coisinha de ter de escrever as letrinhas para poder enviar o comentário é tão chata... não quer desactivar essa opção?
Rosa,
Anabela,
beijinhos gratos.
JJC
PS: O registo "blogueiro" está muitas vezes próximo do desabafo. O meu cansaço é como as nuvens - chega e parte rapidamente.
PPS (para a Anabela):
Sei bem que o silêncio dos visitantes (i.e., a recorrente ausência de comentários) não significa menor estima. Eu sou cliente regular de Calenda Grega (de que gosto muito!) e raramente deixo opiniões. Bj.
Antes de mais fico feliz por "encontrà-lo"...
E mesmo sem o ver fisicamente um sorriso me invadiu ao perceber que continua o mesmo.
Este blog en nada me surpreendeu; a mesma sensibilidade, as mesmas frases (digo, com a mesma raìz).
Fiquei com aquela sensação de conhecer "suas obras" em qualquer parte do mundo.
Com respeito e admiração imensas...
Marta Liliana Almeida
Marta Liliana, bem-vinda a este Mar.
Agradeço-te as palavras amigas. A amizade, já agora, é que é uma "obra" para conhecer em qualquer parte do mundo (e do calendário).
Volta mais vezes.
Bj.
JJC
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