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Número de Ondas

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O tio do senhor Valter


O senhor Valter, no regresso ao trabalho, depois do almoço, encontrou aquele homem às portas da estação dos correios. A princípio, nem o reconheceu, mas depois atentou melhor no nariz espalmado e largo do sessentão, no sorriso triste de menino grande, no delta prognato a sul do rosto.
- Tio Joaquim?
Um abraço, uma gargalhada, certos segundos remirando-se. Enfim, o motivo da visita (rara, rara) deste irmão mais novo do pai.
- Precisava que me ajudasses a escrever um requerimento, menino.
Explicou-se melhor. Tinha comprado um carro há dois anos em “leasing” (o senhor Joaquim dizia “lisse”) para ir com a esposa, a ti’Ana, vender hortaliça a Coimbra – ao Bairro Norton de Matos, ao Monte Formoso, ao Casal Ferrão, ao Barrro do Brinca, a Santa Apolónia, à Adémia, aos Fornos. Quando a mulher adoecera, coisa ruim dos ossos, lá diminuira a dedicação aos negócios e, claro, as contas haviam descambado.
- O problema é que, sem carro, não ganho dinheiro que se veja e a minha reforma nem para metade da prestação dá. Se os gajos da Martinloc me reduzissem o valor da mensalidade e me devolvessem a carrinha, eu podia pagar-lhes. Precisava de tempo e de compreensão, né?
O senhor Valter levou o tio ao chefe dos correios, pessoa habituada a reclamações e requerimentos, e transmitiu-lhe, em breves palavras, a angústia do familiar.
- Muito bem – disse o chefe, que estava contente porque a filha conseguira entrar na universidade e a mulher cozinhara, para o almoço, uma massinha guisada que era de a gente comer e ajoelhar-se perante Deus.
Mas fez questão de moderar as expectativas do senhor Valter e do senhor seu tio.
- Não vai ser fácil, senhor Joaquim, embora seja evidente que tem razão. A sua situação é até um exemplo claro do que se passa hoje em Portugal.
- Como? – perguntou o vendedor de hortaliça.
- As finanças estão a matar a economia.
O velho figueirense encolheu os ombros e o senhor Valter desconfiou de que o chefe estava a reproduzir, ali, um artigo qualquer que decerto lera na última página do JN.

Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 10de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.devaneiosedesabagos.blogspot.pt/.]

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