Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Voyeur

O senhor Valter dos correios adormecia, em regra, pelas onze da noite. A janela do seu quarto, última da fachada predial – se contássemos da esquerda para a direita –, dava para a rua, mesmo sobre o banco da paragem de autocarro. Em finais de Julho, ele reparou que aí se encontrava, entre sussurros e moderada galhofa, um casalinho. Vira-os, certo dia, ao chegar do pavilhão da Palmeira, depois do treino de ténis de mesa. Estavam sentados, muito juntinhos. Não eram já novos. Ela, loira e pálida, muito magra e frágil, teria os seus trinta e cinco; ele, alto, forte, de bigode circunflexo, teria não menos de quarenta anos. Valter apercebera-se da ternura latente sob o tecto da paragem e pensara: o amor vem sempre a tempo. Nas noites seguintes, ouvira-os arrulhando como pombos e, nem sempre mantendo a calma, escutara suspeitos suspiros pela frincha da janela. Quando o encontro se prolongava, também adivinhava gemidos, e então – tanto quanto se percebia pelo movimento nervoso dos corpos (ora sentados, ora de pé) – o idílio não se limitava já à asséptica poesia do início. Durante dois meses, assistiu à história bonita do casal e adoptou como sua aquela normalidade feliz. Mas a uma terça-feira (dia primeiro do treino de cada semana no pavilhão da Palmeira), ao chegar a casa, o funcionário dos correios ouviu uma altercação. A mulher queixava-se; o homem respondia num murmúrio humilde. O senhor Valter entrou no lar e, prescindindo até do jantar, foi pôr-se atrás da cortina para saber do que ali se passava. A loira acusava o seu amor de cobardia e de mentiras. Ele respondia “Não-não-não”, mas o seu tom denunciava que sim. Na quarta-feira, já só apareceu o quarentão. O senhor Valter viu-o de viés, em pé ou sentado junto ao banco da paragem, fumando inquietamente, mirando o cimo da rua, suspirando. Tossia com frequência, o triste. Ao fim de uma hora e meia, mais ou menos, saiu dali com passos lentos. Voltaria na quinta e na sexta-feira, sempre em vão. E, enfim (em fim), desistiu. O dono da janela imaginou que alguma coisa precipitara o ocaso daquela novela particular - e facilmente se dispôs a esquecer acção e personagens. Mas reviu, no princípio de Novembro, o homem. Foi na Praça da República, a um sábado, pelas três da tarde: o indivíduo passeava com a mulher e dois filhotes, aparentando a serenidade de um patriarca realizado. A esposa, uma morena gordinha com olhos grandes (talvez azuis), parou por momentos, ali ao início da rua Padre António Vieira, apoiando-se no ombro do cônjuge enquanto tirava do sapatinho direito uma areia incómoda. O senhor Valter também se cruzou, por alturas do Natal, com a loira balzaquiana que tantas vezes vira e ouvira da janela do quarto. Foi no edifício dos correios: solitária, na fila do telefone, esperava pesadamente pela sua vez. Trazia na mão um livro (Boris Vian, A Espuma do Dias) e tinha um ar cansado. Estava evidentemente grávida. 

 Arco de Baúlhe, 11 de Abril de 2012. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ecosdotempo.blogs.sapo.pt.]

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