O senhor Valter tinha uma surpresa ao chegar a casa, na primeira sexta-feira de Janeiro: a esposa Gracinda esperava-o junto à porta, com as suas malas e um volumoso saco de legumes (oferecidos, à última hora, pela mãe, na hora da partida da camioneta).
- Voltaste? – perguntou-lhe o funcionário dos correios, sem a beijar ou abraçar, mas carinhosamente. Ela encolheu os ombros.
- É como vês. Pensaste que já eras viúvo?
Riram-se então brandamente e tudo parecia anunciar uma reconciliação fácil. O problema foi a foca, que não conhecia a nova residente – sua homónima – e manifestou, desde os primeiros instantes, uma irredutível antipatia face à rival. A mulher tão-pouco se deu ao trabalho de fingir que gostava do bicho: queixou-se do seu aspecto (“Parece o diabo!”), do odor (“Um cheiro de mortos!”), da vergonha (“Hão-de dizer que esta casa é um jardim zoológico!”). O senhor Valter, às primeiras lamúrias, ainda pensou na conveniência de manter as malas da esposa fechadas para o caso, digamos assim, de nova crise conjugal. Mas era um homem misericordioso e pôs de lado, quase imediatamente, a tentação.
À noite, a foca soltou gemidos ciumentos por ver, na cama, ao lado do dono, aquela mulher. Não admitiu que, na
sua banheira, se colocassem dois tapetes de borracha azuis (comprados em Viseu, numa loja chinesa). E urinou sobre as pantufas do senhor Valter, decerto para se vingar do barulho d’acasalamento que atravessava as paredes do quarto principal. No dia seguinte, recusou-se a tocar na comida que, orientada pelo esposo, a Gracinda mulher disponibilizara no soalho da cozinha, sobre um cartão.
Ao longo da semana, o panorama agravou-se: a foca impediu-lhes o sono e a normal vida doméstica em geral (com urros, silvos, empurrões), mostrando-se cada vez mais agressiva, sobretudo com a nova patroa. Quando, uma semana depois do regresso da esposa, o senhor Valter encontrou a mulher no chão, apoplética, tentando libertar-se do peso da foca (que, deitada em cima da humana, assistia ao "Preço Certo"), lá tomou a decisão de devolver ao zoo de Lisboa aquele ser com barbatanas e mau feitio.
Mas, apesar de nos meses seguintes visitar regularmente (sempre sozinho) a sua foca, na capital, as saudades doer-lhe-iam, de aí em diante, como uma chaga profunda e crónica.
A mulher, essa, após alguns esboços de gratidão pela atitude do marido, rapidamente voltou àquela conduta habitual, feita de frio e de ressentimento sem razão óbvia. Ao esposo, por vezes, apetecia-lhe perder a paciência, mas a sua natureza fundamental levava-o sempre a perdoar, não sem grande dificuldade, as neuras esponsais. Se os amigos, a brincar, lhe perguntavam – na tasca do Antunes, ali ao Arnado – qual das Gracindas tivera ele de entregar no jardim zoológico, o funcionário dos correios encolhia os ombros e respondia sem satisfação evidente:
- A foca.
Contudo, pensava muitas vezes: “Antes fosse a outra!”
Ribeira de Pena, 19 de Abril de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.opengalleries.org.]
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