Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 7 de abril de 2012

A foca

O senhor Valter, funcionário dos Correios em Coimbra, não cabia em si de contente: acabara de receber um telefonema do Zoo de Lisboa dando conta de que ele próprio, com a sua frase sobre a "Natureza em Perigo", fora o vencedor do concurso. Telefonou à mulher, muito excitado: - Gracinda, ganhei o concurso! A esposa já nem se lembrava de que ele houvesse concorrido fosse a que fosse. - Qual concurso, homem? - Aquele da "Natureza em Perigo"... Não te recordas?... Vinha no "Diário de Coimbra"... Eu enviei aquela frase... Gracinda interrompeu o exercício de descascar batatas e fez um esforço. - Hum.. Já me recordo... Escreveste qualquer coisa sobre os rios, não foi? - Sim... "No presente, os rios correm. No futuro, os rios morrem." - E ganhaste? - Ganhei. Dão-me o prémio no sábado, de manhã, em Lisboa. - Quanto é? - Não é em dinheiro... É uma foca. - Uma quê? - Uma foca. - Morta? - Morta? Para que queria eu uma foca morta? - Sei lá... Para comer... - Estás doida? É uma foca viva para criarmos... A senhora Dona Gracinda olhou em volta, confirmando o facto de a sua casa não ter senão uma cozinha, um quarto, uma pequena sala de jantar e uma casa-de-banho. Rosnou: - E onde pensas tu meter a puta da foca? O senhor Valter encostou mais o auscultador ao ouvido, receando que o chefe dos correios, ali ao lado, ouvisse o vernáculo inconveniente da esposa. - Olha a linguagem, Gracinda. Eu não te admito... Mas a mulher não moderou o volume nem a substância da sua indignação. Gritou-lhe: - A minha mãe não pôde ficar cá de um dia para o outro, quando veio à consulta no hospital, porque (disseste tu) não tínhamos espaço cá em casa. E tu queres meter aqui, agora, uma foca, catano?! O funcionário dos correios começou a sentir um insuportável calor no rosto. Um frémito percorreu-lhe espinha e pernas. A voz subiu-lhe de tom: - A foca vai aí para casa, sim senhora! Sou eu quem paga a renda! Ao menos não faz comentários à nossa vida, ao contrário da tua mãe... Veio, do outro lado, um curto silêncio. Depois, já não gritando, o enunciado metálico da Dona Gracinda: - Se a merda da foca entra aqui em casa, eu saio. Valter casquinou, com desprezo, ignorando o trejeito interrogativo do chefe, ali mesmo ao seu lado: - Pois podes sair. Mais espaço fica. Quando chegou do emprego, já não viu a mulher, mas não deu importância ao caso. Calculou que ela estivesse em casa da mãe, em Tondela, e indignou-se só de pensar que na residência da sogra se debatesse, com o veneno habitual, a sua vida honesta de funcionário dos correios, colaborador do "Ecos de Santa Cruz", treinador de ténis de mesa no Desportivo de Santa Clara. ("Nem filhos te deu", deve dizer a sogra, com o seu habitual hausto de dor e reprovação.) Ao serão, preparou um singelo prato de atum e massa, jantou a olhar para o telejornal, adormeceu no sofá e por pouco não chegava tarde ao emprego na manhã imediata. Nos dias seguintes, habituou-se a comprar, na mercearia da rua, pão, legumes, algum acompanhamento (peixe ou carne) e a fazer o jantar. À vizinhança inquiridora, disse que a sua Gracinda tinha ido à terra visitar a mãe. No final dessa semana, foi a Lisboa receber o prémio: um diploma e a foca. No regresso, incomodou-o um pouco o barulho que o animal fazia, no banco de trás da Peugeot, mas já foi simpatizando com as curiosas expressões do bicho e riu-se a bandeiras despregadas com o susto que apanhou o homem das portagens. Chamou-lhe "Gracinda", em homenagem à esposa, apesar de se tratar de uma foca-macho. Adaptou a casa e o quotidiano às necessidades da nova hóspede, tendo para isso estudado cuidadosamente, em livros e revistas, os seus hábitos e, sobretudo, a sua alimentação. Grande parte do salário passou a ir para a conta da água e para a conta do peixe. Mas Valter enamorou-se de tal modo do animal que mal pensava em dinheiro. Era, naquele seu modo simples de ver as coisas, um homem feliz. Duas ou três vizinhas ainda lhe perguntavam, ao fim de um ano, pela Dona Gracinda. Mas ele já nem pensava duas vezes ao responder: -Lá está. Ou na varanda, ou na banheira, ou na sala a ver o "Preço Certo". O "Preço Certo", acredite... E abana a cauda de cada vez que o Fernando Mendes diz "Espectáculo!"... Vou agora comprar-lhe dois quilos de sardinhas. 

 Coimbra, 07 de Abril de 2012. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.smartkids.com.]

2 comentários:

Nelson disse...

É caso para dizer que a put* da foca é um "Espectáculo".

Abraço
Nelson

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Abraço, Nelson!