Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Trasfega


A MP levou para a Madeira, a recomendação minha, um livro de contos intitulado Trasfega (Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2003), de Cristóvão de Aguiar. No regresso, quis discutir comigo alguns aspectos de algumas das narrativas e eu, por dever de exegese, obriguei-me a reler a obra.
Cristóvão de Aguiar é um escritor açoriano que mereceria, da parte de críticos e das instituições académicas, um reconhecimento maior. A pátria parece preferir, à literatura, derivados industriais sousa tavares, rebelo pintos, dos santos, etc.
Conheci pessoalmente este exímio cultor da palavra literária, no âmbito de um Prémio Literário em que fiz parte do Júri, e pude até, numa das reuniões de trabalho, beneficiar de uma sua generosa oferta – queijinho dos Açores, com o pão e vinho que se pôde arranjar. Aproveitei a ocasião para lhe solicitar, em dois dos seus livros, a graça de autógrafos; ele acedeu e acrescentou-lhes simpáticas dedicatórias.
A sua maior obra é, sem dúvida, Raiz Comovida, canto ilhéu & universal que me parece superior ao canónico Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, ou ao celebrado Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo. [Parênteses: a expressão “Raiz Comovida” é um achado; não deve haver melhor designação para isto que se passa com quem faz da linguagem um tributo permanente ao chão de onde vem.]
Trasfega é – humanamente e literariamente - uma brisa de beleza, singeleza e engenho. À boleia de histórias muito simples e, apesar disso, sempre surpreendentes, cruzamo-nos com o pensamento, as emoções e os modos de falar da gente do povo (sobretudo, da gente das ilhas). No meu (pessoalíssimo) Plano Nacional de Leitura, eis um livrinho para recomendar muito vivamente.
Reli-o na praia da Tocha, num cantinho atlântico muito limpo e sereno que pede meças a qualquer estância turística do nosso país.
Bem a propósito, a páginas tantas, Cristóvão de Aguiar cita o intemporal Torga:
“O destino destina, mas o resto é connosco.”
Num tempo cheio deste negrume ominoso que a crise e respectiva retórica trouxeram aos nossos dias, vale a pena o aconchego torgaguiariano, não achais?
O destino é o destino, pois sim. Mas enquanto há vida, é connosco.

Coimbra, 30 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto de Cristóvão de Aguiar foi colhida, com a devida vénia, em http://www.blogueforanadaevaotres.blospot.com.]

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Família(s)


Na infância, sente-se a verdade; na maturidade, percebe-se. Por exemplo, que a família é muito importante para a felicidade do ser humano.
Os gregos lá descobriram, sem grande dificuldade, que a raça humana é eminentemente gregária. Um deles, talvez o maior de todos, chamou ao mamífero que somos um animal social. Tudo a ver com a noção de família, senhores.
Sei hoje que temos, ao longo da nossa vida, não uma mas várias famílias: os pais, os irmãos, os primos; a mulher (ou o marido), os filhos; os amigos; os colegas; os nossos alunos; os vizinhos; a arte; a religião; o clube; a humanidade.
Quando escrevo, é tudo muito incompleto se não houver, para o que produzo, leitores.
De modo que, atenção, podemos sobreviver sozinhos. Mas precisamos de uma família (de várias famílias) para viver.

Coimbra, 25 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.familyguy.com.br.]

Ofício intelectual


Um amigo lança-me a provocação:
- O problema deste país é haver muitos intelectuais.
Respondo:
- É um problema haver quem diga que ser intelectual é um problema.
Ele volta à carga:
- Não me lixes, pá. Que faz um intelectual, hã?
Eu não estou à espera de uma pergunta tão radical e levo dois, três segundos a retorquir. Consigo-o, enfim. E, como o enunciado me agrada, (e)levo-o a texto blogável.
Respondo:
- O trabalho do intelectual consiste no esforço de arrumação lógica e dinâmica da informação e do conhecimento.


PS: O meu amigo, atenção, não se ficou. Disse-me ainda: "Tá bem, abelha!"

Coimbra, 24 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

22 de Agosto


Se eu estivesse na Madeira e o Mestre João fosse vivo, hoje era dia de festa rija: espetada, pãozinho bom, vinho a rodos, música, gargalhadas. O pretexto para a celebração seria (mais) um aniversário - o 51.º - de casamento. Sei que, no Caniçal, como de costume, houve missa e que, com menos gente que habitualmente, a família se reuniu.
A minha filha, certo dia, interpretando o que sentíamos todos, saiu-se com esta: "O dia 22 de Agosto é o nosso Natal na Madeira." Certíssimo, VL!
Ainda estava vivo o Mestre João quando eu escrevi (e lhe dediquei), em 2008, uma novela intitulada A Casa Circular. A personagem principal desta narrativa era determinado "Manuel Vieira" que, em boa verdade, tinha muito do meu sogro. Permito-me recordar, aqui, o final do terceiro capítulo:
«A família era o bilhete de identidade de Manuel Vieira. O seu lugar. O seu calendário. O motivo para acordar todos os dias e acreditar no futuro.
- E os outros, mestre Manuel? - perguntara, uma vez, o padre Fontinhas.
- Os outros são parte da família - respondera o velho, à gargalhada.
E acrescentara, tocado subitamente pela graça da poesia em seu discurso de homem simples:
- A minha família é como a minha Igreja. Não tem tecto.»
Senhor João, Mestre, Amigo: que grande honra foi tê-lo conhecido!

Coimbra, 22 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Síndrome de Helder Postiga


Que triste é nunca bem realizar
O destino apetecido que sonhamos.
Tão dura é esta febre de faltar
Sempre qualquer coisa ao que tentamos.

Que triste é nunca ser grande o bastante
(Subir ao quase Olimpo e ficar fora)
Dói tanto estarmos só a um instante
De chegar a tempo à certa hora.

Coimbra, 22 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.coisa-de-leoes.blogspot.com.]

domingo, 21 de agosto de 2011

Sporting, isto é, a crise


Sou do Sporting Clube de Portugal desde que nasci. A minha família toda, incluindo a que veio a decorrer do meu casamento e dos casamentos de meus irmãos, é (salvo lamentáveis excepções) sportinguista.
Estou, depois de termos empatado com o Beira-Mar, aborrecido como um Nietzsche em fase terminal. Mas sou, agora, ainda mais sportinguista. (Percebe-se isto? Claro que não: o amor é da esfera, sobretudo, do irracional.)
O jogo de hoje, para além da dolorosa incompetência (inadaptação ou má forma) de Wolwswinkel, de Schaars, de Matías Fernandez, de João Pereira, etc., ficou marcado pela ausência de um árbitro mimado que, por não suportar as (justíssimas) queixas do presidente do Sporting, corroboradas aliás por tudo quanto é jornalista em Portugal, se recusou a apitar.
Esta ausência merece alguma reflexão. Num país onde toda a gente se queixa da arbitragem, bastou o Sporting lamentar-se publicamente - e logo os medíocres do apito se sentiram "ofendidos". Que dizer, então, das recorrentes alfinetadas de Pinto da Costa (quando o sistema, por segundos, falha)? Ou das queixas (em sede, até, de tribunal, com divulgação de escutas e tudo) do Benfica? Etc., etc., etc.???
Portanto, os senhores árbitros (quero dizer: estas almas, incompetentes e bem pagas) têm acessos de comichão ética (só) quando se trata do Sporting, não é verdade?
O raio que os parta!

PS: O treinador Domingos Paciência ainda não percebeu que, entre Schaars, André Santos e Rinaudo, só pode jogar um de cada vez?
PPS: O melhor defesa lateral esquerdo do Sporting é, em minha opinião, Diego Capel.
PPPS: Helder Postiga deveria ter, no Sporting, a posição "10", isto é, a que, no Benfica, tem Aymar.

Coimbra, 21 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ponto de ordem


Em Madrid, ontem, o Papa Bento XVI lembrou que a economia deve centrar-se, mais do que na maximalização do lucro, nas necessidades da pessoa humana.
Ainda não se conhecem as reacções dos sempre sensíveis mercados...

Coimbra,19 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Milagre nos Andes


Ouvi, pela segunda vez, no passado dia 17 de Agosto, na TSF, uma entrevista de Carlos Vaz Marques a Nando Parrado, o autor de Milagre nos Andes (Ed. Casa das Letras). O livro consiste sobretudo no relato de acontecimentos verídicos, vividos pelo entrevistado e por mais quarenta e quatro outros passageiros do avião Fairchild, da Força Aérea Uruguaia, em 1972. Na viagem – com destino ao Chile - seguia uma equipa de râguebi (da qual fazia parte Nando Parrado) que iria jogar uma partida amistosa com uma formação chilena. O avião despenhou-se na vasta zona dos Andes. Vinte e nove almas sobreviveriam à queda e, mais tarde, dezasseis apenas seriam finalmente resgatados de um lugar remoto.
Parrado, na sequência da queda do avião, ficou três dias inconsciente, com o crânio estilhaçado, mas sobreviveu. Como os seus companheiros de infortúnio, resistiu a ferimentos, cansaço, frio (temperaturas de trinta graus negativos), fome, solidão, desespero. Ele próprio encetou uma jornada, que durou dias, até encontrar alguém que enfim contactasse entidades de salvamento. Setenta e dois dias depois do início da tragédia, dezasseis almas, já dadas como oficialmente mortas, regressaram vivas ao mundo dos vivos.
Nando Parrado, sobre a ideia de morrer, explica que o desaparecimento de um homem não altera em quase nada o curso do mundo. Com simplicidade desconcertante, explicou que o regresso à sua terra ocorreu depois de haverem sido rezadas várias missas por sua alma, e que essa circunstância lhe permitira perceber, em concreto, o que se passava depois do nosso próprio passamento. Cito de cor:
“Que se passa quando morremos? Não se passa nada. Não acontece nada. Cães andam pelo jardim, táxis fazem serviços, meninos brincam, homens e mulheres trabalham, raparigas conversam à entrada de um Café, etc. Não acontece nada de diferente. Tudo continua igual.”
A ideia encerra uma óbvia lição. Por exemplo, não nos tomarmos demasiado a sério enquanto vivos; termos consciência da nossa finitude e efemeridade; prevenirmo-nos contra a vaidade e a glória (sempre) fugaz.
Mas eu, que ainda não pude morrer e voltar, tenho uma experiência igualmente profunda que acrescenta algo ao tema. Digo-vo-la: já vi partir gente querida, próxima, insubstituível - e essas pessoas fazem-me, todos os dias, falta.
De modo que, Nando Parrado, vista a coisa do lugar onde (ainda) me encontro, algo se passa quando alguém desaparece. Muitas vezes, tudo.

Coimbra, 18 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Vida que podia ser


Ouço, muitas vezes, alguém dizer sobre um acidente, uma doença, uma perda: "Podia ter sido pior..."
Também ouço ou leio, menos frequentemente, desabafos de quem, chegado ao promontório da adultez madura, lamenta o incumprimento de sonhos e expectativas:
"Podia ter sido melhor..."
Sobre a minha vida - e a de outras pessoas que estão/são também (n)a minha vida - dou eu por mim a pensar, não poucas vezes, que podia ser, sobretudo, maior.
Desde menino que me dói esta fascista fugacidade. Agosto, por exemplo, está quase gasto.
(Vale-me que há um Barcelona - Real Madrid, pelas dez da noite e, às onze, o Portugal - França em Sub-20).
Adiante.

Coimbra, 17 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Experts em generalidades


Já toda a gente percebeu que os experts em matéria de economia e finanças sabem muito pouco (senão nada) do que se está a passar no país e no mundo. São, no máximo, bons a fazer autópsias ou a debitar sintomatologias. Nos prognósticos, falham quase sempre (mais do que a taróloga Maia) e, em matéria de terapêutica, são - digamos - uns nabos colossais.
Mesmo assim, vemo-los na televisão com um ar grave e sério perorando sobre taxas de juro, agências de rating, reformas estruturais, impostos, despesa & receita, sacrifícios. Num campeonato de generalidades e de vacuidades, seriam o Real Madrid ou o Barcelona.
Entre outros exemplos, aflige-me o modo como Miguel Beleza diz quase nada com aquela pose de quem sabe tudo. Creio que este ex-ministro das Finanças é bem uma metonímia dos economistas portugueses, essa curiosa espécie de médicos-barbeiros do século XVIII.


Coimbra, 16 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jovemnerd.ig.com.]

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Amor, segundo Unamuno


O DN de 12 de Agosto trazia um brinde não despiciendo: um opúsculo (de contos) muito simpático intitulado Amores (Lisboa, Rosto Editora, 2011). Conteúdo: “Uma História de Amor”, de Miguel Unamuno (um dos autores mais admirados pelo nosso Miguel Torga); e “A Outra Mulher”, de Sherwood Anderson (que me lembro de ter estudado em Literatura Norte-Americana, aí por 1985).
O conto de Unamuno (com tradução é de Maria Judite de Carvalho) é uma maravilha, quer no plano do enredo, quer no da linguagem elegante e depurada. Ficou-me da leitura um passo formosíssimo sobre a noção de amor (pp. 42-43). Ofereço-vo-lo:
“Esperar o Amor! Só o espera quem já o tem dentro de si! Julgamos abraçar-lhe a sombra e já ele, o Amor, invisível aos nossos olhos, nos abraça e nos oprime. Quando julgamos que morreu em nós, é porque já tínhamos morrido dentro dele. E logo desperta quando a dor o chama. Porque não se ama deveras senão depois de o coração do amante se ter misturado no almofariz da angústia com o coração do ser amado. É o amor paixão partilhada, é compaixão, é dor comum. Vivemos dele sem nos darmos conta disso, tal como nos não damos conta de que vivemos do ar senão no momento da asfixia angustiosa. Esperar o Amor! Só espera o amor, só o chama quem já o tem dentro de si, que vive, ainda que o não saiba, do seu sangue. É a água subterrânea que aviva a secura. Sentimos às vezes securas abrasadoras, como as do campo deserto, que estala de sede enquanto voam à solta, à superfície, as folhas levadas pelo vento suão; e todavia, nas profundezas desse mesmo campo, por debaixo das raízes da sua verdura morta, corre sobre a rocha que a sustém, o manancial das águas do céu. E é o rumor dessas águas profundas que se junta ao rumor das folhas secas. E há um momento em que a terra seca e sedenta se abre e brotam à sua superfície as águas adormecidas. Assim é o Amor.”
Senhores: a literatura é uma praia onde se está sempre bem.

Coimbra, 16 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mollydood.wordpress.com.]

domingo, 14 de agosto de 2011

Casal Ferrão


Digo-vos, da Terra, o melhor lugar:
A minha infância, em certo dia -
Que o Tempo também serve para estar
E as datas são também geografia.

Coimbra, 14 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

sábado, 13 de agosto de 2011

Um modelo fatalmente melhor que os anteriores


O ministro da Educação, Nuno Crato, apresentou a sua proposta de modelo de avaliação dos professores.
Não será, por certo, o modelo ideal. Mas é, creio profundamente, muito melhor que os impostos pelas senhoras Rodrigues e Alçada.
Numa primeira leitura, vejo a possibilidade de se diminuir o ataque ao bom ambiente entre pares, nas escolas, e a (pelo menos, parcial) devolução de Tempo a professores e alunos para o que é realmente essencial - o ensino, a aprendizagem.
Por muito justas que sejam as razões para discordar deste novo modelo, é preciso - para já - distingui-lo do maiúsculo Nojo que, nos últimos seis anos, têm sido as outras propostas.
Dito.

Coimbra, 13 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.missdevil.blogs.sapo.pt.]

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Recessão



1. Regresso a Coimbra ao princípio da noite. Muito mar pude eu ver, ao longo da tarde, na praia (tão) limpa da Tocha.
2. A MP na Madeira; a VL no Alentejo: a minha casa, portanto, quase cheia de nada.

Coimbra, 12 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Fotos JJC)

Conhecer para Ver


O melhor entrevistador da rádio portuguesa chama-se Carlos Vaz Marques. Ouvi-o hoje, pelas dezanove e picos, no programa “Pessoal e Transmissível”, a entrevistar um sábio – José Hermano Saraiva.
Retive, entre outras pérolas do quase nonagenário, esta maravilha:
«Muita gente diz: “Só se conhece o que se vê. Eu acho o contrário – só se vê verdadeiramente o que se conhece.”»
Amen, Professor.

Coimbra, 12 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi colhida, com a devida vénia, em http://www.alma-algarvia.blogspot.com.]

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Autoestrada do Sul


Durante parte do dia de hoje, devorei (com indecente volúpia) Todos os Fogos o Fogo, um livro de contos de de Julio Cortázar (tradução de Carlos Barata, Editorail Estampa, Lisboa, 1987). O conto que dá nome à obra é o sétimo de oito. Deverei aqui falar, no Muito Mar, de alguns deles nos próximos tempos. (Ou não.) Para já, em avaliação global, adianto a minha preferência pelo primeiro, “Autoestrada do Sul”.
Durante um gigantesco engarrafamento, que dura vários dias, desesperam de chegar a Paris numerosos viajantes, diversíssimos entre si no que se refere a profissão, estrato socioeconómico, idade, estado civil, cultura, etc. Por imperativos da situação, olham-se, cumprimentam-se, partilham informações, esperanças e medos, trocam palavras. Convivem. A falta de água, de alimentos, de saúde, de companhia, de carinho resolve-se (ou vai-se resolvendo) com a intervenção dos ocupantes dos carros vizinhos.
Só de vez em quando se avança (dez, vinte, cem metros), mas essa circunstância - a priori, um odioso contratempo - revela-se afinal uma oportunidade para as pessoas se conhecerem, se aproximarem, se enriquecerem umas das outras. No final do conto, quando os carros voltam a andar normalmente, i.e., quando o problema algures na via fica resolvido, o enunciado narrativo parece lamentar-se desta sobrevinda normalidade. Um desabafo - que é simultaneamente de uma personagem e do próprio narrador – explicita claramente esta ideia (página 41):
«[…] corria-se a oitenta quilómetros
Em direcção às luzes que aumentavam mais e mais sem que já se soubesse porquê tanta pressa, porquê essa corrida na noite entre carros desconhecidos, onde ninguém sabia nada dos outros, onde toda a gente olhava fixamente para a frente, só para a frente.»

Percebe-se que, tendo havido tempo para o milagre, se formara entre os auto(i)mobilizados uma espécie de co-humanidade essencial. Ou seja, uma comunidade de gente solidária. A marcha retomada interromperá esse estado (ou, de um ponto de vista filosófico, esse estádio).
Uma comunidade é, pois, gente vivendo (n)uma comum idade.

Coimbra, 10 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Diário de um Banana 3


Na terça-feira, pela manhã, li o Diário de um Banana 3, de Jeff Kinney (Ed. Booksmile). O livro foi-me emprestado pelo meu sobrinho António Conceição. Lembra, no conceito e na linguagem, o Diário de Adrian Mole, de Sue Townsend, ou o boneco Calvin, criado por Bill Watterson: humor inteligente, com saudáveis pitadas de nonsense. Não admira que os livros de Kinney sejam este consabido sucesso editorial. As pessoas gostam e precisam (cada vez mais) de se rir. E o riso inteligente é uma espécie sublime de comunicação!

Coimbra, 10 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Escola Pública


Incomoda-me a frequência com que, nos jornais e - sobretudo - na net, se multiplicam os comentários maldosos, malcriados e injustos contra os professores. O governo do PS encarregou-se de fomentar um desprestígio para a classe docente que levará anos a reparar (se a situação for ainda reparável). A cada notícia sobre negociações entre sindicatos e governo, milhares de ignorantes destilam ódio, ressentimento, fúria nazi: os professores são, nas palavras de gente com mais bílis que gramática, "maus, privilegiados, incompetentes, egoístas".
A este panorama muito triste soma-se uma (ainda pouco visível) guerra entre "contratados" e "efectivos". Esquecidos de que os mais velhos estiveram sempre na primeira linha da luta (contra uma avaliação iníqua e burocrática; contra o cariz precário da situação dos mais novos), jovens professores acham que o problema está no pessoal "instalado", "dos quadros". Já vi alguns contratados a afirmar que a avaliação é, afinal, coisa positiva porque permite ver quem são "os melhores" (uma destas opiniões apareceu escrita num fórum social, em código vagamente aparentado com o Português). Isto é, a desejada selva (laboriosamente engendrada por Sócrates, Maria de Lurdes Rodrigues e Valter Lemos) começa a produzir os seus efeitos entre os docentes.
Talvez valesse a pena aos sindicatos reforçar a aposta nesta explicação ao país profundo do que está em causa: que a Escola Pública sofre actualmente um ataque terrível (diminuição de recursos; degradação dos recursos); que a morte (rápida ou lenta) da Escola Pública é um retrocesso na qualidade da nossa democracia; que a desconsideração dos educadores é uma das faces mais visíveis das agressões perpetradas sobre a nossa Escola. "Nossa", verdadeiramente "nossa", porque pública.
Em última análise, para os professores, trabalhar no ensino público ou no ensino privado vem a dar no mesmo. Tal como sucede com médicos, pilotos, motoristas, advogados, recepcionistas, informáticos, enfermeiros, canalizadores, etc.
Mas "isto" não é já igual se considerarmos o interesse do cidadão comum. O serviço público é de todos. O serviço privado é de quem o puder pagar.

Coimbra, 10 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.naoinercial.wordpress.com.]

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Presente


Ó sagradas manhãs que me comovem!
Ó minha pulcra paz de país breve!
Ó divino Presente onde se movem
Os passos e os olhos de quem escreve!

Coimbra, 08 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.skyrapescity.com.]

domingo, 7 de agosto de 2011

Feios, Porcos e Maus


Passou, uma vez mais, na RTP2 o filme Feio, Porcos e Maus, de Ettore Scola. Um grande filme, sem dúvida. Durante cerca de duas horas, desfila à nossa frente um cortejo de miséria e degradação. Interessante (e até bizarro) é percebermos, na narrativa, a simultaneidade de duas dimensões contrárias: a tragédia e a cómédia. Parece um paradoxo isto de um espectador sóbrio se rir das misérias da condição humana. Questão: por que rimos nós, então, perante uma tão cruel representação da indignidade?
Em entrevista à Sic, Eduardo Lourenço cita Baudelaire lembrando que o riso é uma forma de resistência. Por alguns momentos, em vez de lamentarmos a fragilidade da condição humana, aceitamo-la alegremente como parte desta identidade que somos. E rindo nos distanciamos, por zigomáticos instantes, da fatalidade do nosso destino mortal. Isto mesmo acontece com Feios, Porcos e Maus.
Mas o filme de Scola não deixa de ser uma séria e dolorosa visão desta terrível desumanidade que o mundo moderno (ainda) compreende. No final da película, atravessando a manhã da periferia romana, uma menina de (talvez) nove-dez anos, carrega dois garrafões e um balde. Como faz todos os dias, vai buscar água para a barraca onde vive a família. O bairro da lata desperta vagarosamente, numa rotina sans cesse: operários promíscuos cruzam-se com putas conspícuas e ladrões iníquos; domésticas aliviam a bexiga e desempregados dão vazão à testosterona; adolescentes e matronas tratam da higiene pessoal, acendendo vontades incestuosas; uma velha avó espera que a televisão comece a transmitir; etc.
A menina, do alto do planalto, olha a cidade dos outros. Já a tínhamos visto muito inocente e virginal no início da história. Mas agora está grávida, a menina. Não nos rimos.

Coimbra. 07 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.]

sábado, 6 de agosto de 2011

Motor


Os carros envelhecem, degradam-se, avariam. Como as pessoas. Como tudo.
O meu irmão Emanuel e o sogro, sr. Avelino, ofereceram-me esta manhã de sábado e, durante mais de três horas, trataram da minha tão usada carrinha: filtro de óleo, filtro de ar, óleo, plaquetes de travões.
Esparsamente, eu e o meu sobrinho David colaborávamos - ligando uma ficha à tomada mais próxima; trazendo ferramentas, panos de limpeza, etc. Aproveitámos para conversar.
O David é um rapaz muito curioso e muito vivo. Adora automóveis e motos. Quer saber tudo sobre mecânica, electricidade, combustível, modelos e marcas, técnicas, velocidades.
Aí pelo meio-dia, demos por nós a explorar o mundo mágico das metáforas. O David falou na idade da Nissan Primera, eu falei na minha própria velhice. Disse-lhe: "A carrinha é como nós, David."
O David perguntava: "E onde estão as pernas dela?"
Eu: "São as rodas."
"E os olhos?"
"São os faróis."
"E o sangue?"
"O óleo, o gasóleo."
Ao fim de muitas perguntas e respostas, tínhamos construído já uma divertida alegoria. Fiz-lhe, a dada altura, um teste:
"E o motor - o que é, David?"
O meu sobrinho, dominando bem a lógica da metáfora, respondeu imediatamente:
"É o coração, claro."

Portanto: fui tratar da vida da minha carrinha, hoje. Que a morte é não haver motor.

Coimbra, 06 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Recuperação momentânea da imortalidade


Café, torrada, manteiga
Sol à mesa e um jornal -
Manhã minha, manhã meiga
Manhã de eu ser imortal.

Coimbra, 05 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto é um outreu, em Edinburgh, no ano ainda agora de 1986.]

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Música do Mundo


Defendi, à roda dos romances de Júlio Dinis, que uma boa história compreende sempre ritmo e melodia. Por ritmo, deve entender-se a intriga nuclear (por exemplo, em As Pupilas do Senhor Reitor, Daniel separa-se de Margarida, esquece-a por alguns capítulos, redescobre-a); por melodia, deve entender-se a acção (ou, como preferi chamar-lhe, um a intriga periférica que “é”, em boa verdade, a aldeia dinamicamente contada – com os contributos de João Semana, José das Dornas, João da Esquina, etc.).
Sendo o romance o modo literário que, por excelência, representa a própria vida humana, não me parece impertinente estender esta metáfora ao mundo que habitamos e somos.
E passa-se que toda a gente, de modo mais ou menos eloquente, fala do ritmo vertiginoso da vida moderna, mas que raros se dão ao trabalho de reflectir sobre a sua melodia (ou a falta dela).

Coimbra, 04 de Agosto (parabéns, Nelo!) de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (d’As Pupilas) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.universidadefalada.com.]

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Bom Professor


Por enquanto, eu não duvido das boas intenções do novo ministro da Educação, Nuno Crato. Mas confirmei ontem, durante a sua reunião com deputados dos vários partidos, que se trata de um voluntarista pouco preparado e, em vários domínios, com ideias comprovadamente erradas. Confunde, por exemplo, classificação com avaliação e instrução com educação. A sua obsessão com exames, que dava um bom boneco em pseudo-debates televisivos, afigura-se coisa pobre como programa de governo.
Ocupo-me, para já, da sua noção de “bom professor”: aquele que - cito, obviamente, de cor - é capaz de apresentar melhores resultados escolares, elevando os conhecimentos científicos e as capacidades dos seus alunos, no contexto de um determinado quadro programático-curricular. A esta luz, medir-se-á a qualidade do professor apenas pelos resultados escolares dos respectivos discentes (aqui comparecendo os amados exames).
Ora, alunos e professores sabem que esta ideia do senhor ministro está incompleta. Porque ser professor é “isso”, sem dúvida, mas é também (e muitas vezes sobretudo) muito mais do que isso. E quem não perceber esta nuance quase nada percebe.
Se Nuno Crato tiver a humildade dos sábios, que passa muito por reconhecer a ignorância (ou a incompletude do que conhece-sabe), ainda vai a tempo de ser um bom ministro.

Coimbra, 03 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Michelle Pfeiffer num filme de 1995, Mentes Perigosas), foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cinemahistoriaeducacao.com.]

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Soneto de ver mais


Por vezes se liberta o meu olhar
Da pobre, imediata condição:
É quando sinto olhos de voar
Buscando o mais que haja além da mão –

Por exemplo, é quando vejo o mar
Tocando-se de céu (e o céu de chão)
Ou quando, à falta de o mirar,
Finjo que ele existe em vez de não.

Há muito ser eterno em ver o mar
E em ser maior o visto que a visão;
Há muita eternidade no olhar

Se à pobre, imediata condição
O olhador souber acescentar
As asas de olhar com ilusão.

Coimbra, 02 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto da praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fotodependente.com.]

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Qual o Plano


Fui jogador de futebol, estudante. Sou adepto do futebol (a verde e branco) e professor.
Sei por experiência própria da importância da liderança, isto é, de termos bons líderes, de sermos bons líderes. Quem cumpre ordens, funções, tarefas necessita de acreditar que, acima de si, há uma visão, uma estratégia, um plano. O que se faz tem, a essa luz, sentido, lógica, razão de ser.
Fui jogador de futebol e, ainda que preferisse jogar do lado direito, apressava-me a correr para a faixa esquerda do campo se o treinador mo pedia. Acreditava que essa era decerto a melhor opção, pois claro.
Fui estudante e, ainda que não gostasse de aulas excessivamente expositivas ou de trabalhos de grupo, cumpria as minhas obrigações discentes. Acreditava que aquele sacrifício, a prazo, daria frutos.
Sou adepto do Sporting e, ainda que me pareça errada contratação de certos jogadores e a dispensa de outros (por exemplo), busco no mais fundo de mim alguns motivos de esperança. Acredito que outros, com mais tempo e competência, pensaram no assunto e escolheram o caminho certo.
Sou professor e sei que, mais do que obrigado a ser sempre popular, estou obrigado a conduzir os meus alunos pelos caminhos mais correctos e produtivos. Acredito que o processo e os frutos do processo são justos e bons.
No domínio da religião, deve haver um semelhante contrato de confiança entre criaturas e Criador.
Como, fora de catecismos convencionais, gosto da ideia de Deus, interrogo-me não poucas vezes sobre a visão, a estratégia, o plano que o Grande Autor tem para a minha pobre personagem. Sei tão pouco desta minha narrativa!
Olho para trás e pergunto: e agora? Para que foi isto tudo? Para que é isto tudo? Como se conclui, senhores, esta diegese pessoal?

Dito isto, vou correr. Coisa mais fácil, hoje: está um dia chuvoso, de temperatura amável. Também enquanto corro a minha vida se escreve.

Coimbra, 01 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi colhida, com a devida vénia, em http://www.praia-de-mira-com.]