Durante parte do dia de hoje, devorei (com indecente volúpia) Todos os Fogos o Fogo, um livro de contos de de Julio Cortázar (tradução de Carlos Barata, Editorail Estampa, Lisboa, 1987). O conto que dá nome à obra é o sétimo de oito. Deverei aqui falar, no Muito Mar, de alguns deles nos próximos tempos. (Ou não.) Para já, em avaliação global, adianto a minha preferência pelo primeiro, “Autoestrada do Sul”.
Durante um gigantesco engarrafamento, que dura vários dias, desesperam de chegar a Paris numerosos viajantes, diversíssimos entre si no que se refere a profissão, estrato socioeconómico, idade, estado civil, cultura, etc. Por imperativos da situação, olham-se, cumprimentam-se, partilham informações, esperanças e medos, trocam palavras. Convivem. A falta de água, de alimentos, de saúde, de companhia, de carinho resolve-se (ou vai-se resolvendo) com a intervenção dos ocupantes dos carros vizinhos.
Só de vez em quando se avança (dez, vinte, cem metros), mas essa circunstância - a priori, um odioso contratempo - revela-se afinal uma oportunidade para as pessoas se conhecerem, se aproximarem, se enriquecerem umas das outras. No final do conto, quando os carros voltam a andar normalmente, i.e., quando o problema algures na via fica resolvido, o enunciado narrativo parece lamentar-se desta sobrevinda normalidade. Um desabafo - que é simultaneamente de uma personagem e do próprio narrador – explicita claramente esta ideia (página 41):
«[…] corria-se a oitenta quilómetros
Em direcção às luzes que aumentavam mais e mais sem que já se soubesse porquê tanta pressa, porquê essa corrida na noite entre carros desconhecidos, onde ninguém sabia nada dos outros, onde toda a gente olhava fixamente para a frente, só para a frente.»
Percebe-se que, tendo havido tempo para o milagre, se formara entre os auto(i)mobilizados uma espécie de co-humanidade essencial. Ou seja, uma comunidade de gente solidária. A marcha retomada interromperá esse estado (ou, de um ponto de vista filosófico, esse estádio).
Uma comunidade é, pois, gente vivendo (n)uma comum idade.
Coimbra, 10 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
2 comentários:
Com as óbvias diferenças, fizeste-me lembrar «La Peste» de Camus, o primeiro livro que li de princípio a fim em Francês na juventude. Marcou-me muito, e ainda hoje o vou folheando às vezes.
Obrigado por me despertares a recordação e a curiosidade por uma obra que não conhecia. Um abraço
É curioso (e muito pertinente) o que dizes. No meu caso, lembrei-me muito de um conto de Saramago, "O embargo".
Fico satisfeito por te despertar a curiosidade. Além deste conto, acrescento, há pelo menos mais quatro de altíssimo interesse ("A Saúde dos Enfermos", "Instruções para John Howell", "A menina Cora" e "Todos o Fogos o Fogo"). Um grande, grande livro de um altíssimo escritor!
Abraço.
JJC
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