domingo, 23 de janeiro de 2011
Sábado perfeitinho
1.
Coimbra, enfim.
Acordo lá pelas onze e meia e acrescento-me o direito de mais um pouco de aconchego talâmico.
Depois, sinto o cheiro mágico do café com que a MP enche a casa e saboreio uma chávena de vida à frente da televisão, com pão e manteiga, jornais na net e duas ou três séries da Fox.
Modorra curtida, digestão feita, equipo-me e obrigo-me aos abdominais do costume. Sigo para o Choupal, a seguir, onde castigarei o corpo por aproximadamente 35 minutos.
Pelo caminho, beijo a Mãe, sei de novas e recolho correio.
Corro com vagares de quarentão maduro, regresso a casa, tomo banho, alimento-me.
2.
No resto da tarde, estou com Han-Shan, poeta chinês que terá vivido no século VII. O livrinho chama-se O Vagabundo do Dharma – 25 Poemas de Han-Shan (Lisboa, Ed. Cavalo de Ferro, 2003). Segundo Jacques Pimpaneau, seu tradutor para o francês, o autor “foi uma espécie de hippy do seu tempo”. Entre outros, Jacques Kerouac (o génio de On the Road) reconheceu-lhe a importância e o cariz revolucionário. É ainda Pimpaneau que explica o fascínio da geração beatnick como uma espécie de reacção a algum materialismo ocidental: as pessoas buscavam para as suas vidas um estado “zen”, isto é, queriam “reencontrar uma certa liberdade natural, torcer o pescoço à lógica e suas vantagens para escapar aos seus limites”.
Ana Hatherly traduziu Han-Shan do francês para o português e lembra que, no caso do poeta oriental como no caso dos ocidentais da primeira metade do século XX, se percebe um certo ideal de “marginalidade”, “associado a uma demanda espiritual intelectualizada”.
Em poemas muito curtos, o que encontramos, com efeito, é esse olhar estrategicamente marginal sobre a vida e a morte, sobre o lugar do eu no avulso cosmos, sobre a procura de uma unidade bela (que não é senão – segundo percebi – a soma viva de tudo quanto seja possível alcançar).
À semelhança do que lemos em Caeiro e em algum Ricardo Reis, cruzamo-nos com a Serenidade e a Doçura por um instante perfeitas. Menos do que aquilo, seria a morte; mais do que aquilo, seria ruído.
3.
Ofereço-vos alguns dos meus versos preferidos de O Vagabundo do Dharma:
“Meu coração lua de Outono / Verde lago brilhante imaculado puro // Não pode haver comparação / Ensina-me a dizê-lo.” (P. 30)
“No meu lar o que há? / Só um leito de livros” (P. 44)
“A vida humana não chega a cem anos / Muitas vezes tem mil anos de desgosto // Mal começamos a melhorar de uma doença / Logo nos consumimos por causa de um filho ou de um neto // Baixamos os olhos para a terra onde cresce a raiz do cereal / Erguemos o olhar para o cimo da amoreira // Quando a Balança cair no Mar da China / Chegando ao fundo começamos a saber parar” (P. 48)
“Ou eu tenho um corpo ou não tenho / Ou sou eu ou não sou eu // Assim meu pensamento se interroga e calcula / O tempo passa docemente: fico sentado encostado à falésia // Entre os meus pés as verdes ervas crescem / Sobre a minha cabeça a poeira vermelha cai // Já vejo homens comuns / No meu leito de morte deporem vinho e fruta” (P. 50)
“Lembro-me daqueles que outrora encontrei / Célebres em lugares que já percorri // […] Como saberia eu que sob um pinheiro / Abraçando os joelhos sentiria o frio chicote do vento?” (P. 52)
“A vida humana situa-se na agitação da poeira / Exactamente como um insecto no meio de uma bacia // O dia todo avança girando girando / Não sai do meio da bacia // Os imortais não podem ter / Preocupações planos sem fim // Anos meses são como água que corre: / De repente está-se velho” (P. 58)
“Vós olhais as flores no meio das folhas: / Quanto tempo de bom podem elas ter? // Hoje temem que alguém as colha / Amanhã aguardam que alguém as varra // Cativantes os entusiasmos do coração / Após vários anos envelhecem // Comparado com o mundo das flores / O fulgor do vermelho como o conservar?” (P. 60)
4.
De lá longe (do século VII e da China profunda) chega-me assim esta surpresa. Custou-me 1 Euro, no Jumbo de Vila Real. E, já agora, serve para confirmarmos o quanto nos falta(ria) sempre conhecer, apesar dos mil quilómetros já lidos. Na literatura, na vida…
5.
O dia termina em família: irmãos, sobrinhos, cunhados. Sábado, modéstia à parte, perfeitinho.
Coimbra, 22 de Janeiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
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1 comentário:
Belo dia.
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