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Número de Ondas

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago, José


José Saramago morreu. Viva Saramago.
Sou saramaguiano a.N., isto é, de antes do Nobel. O meu desvelo começou em 1982, com Levantado do Chão, oferta da amiga Salvina Góis no dia dos meus 19 anos. Prosseguiu com crónicas, romances – e, muito mais tarde, com menor admiração, abarcou até a sua lírica e o seu teatro. Sou autor de uma adaptação da peça A Noite que cheguei a sonhar ser, um dia, possível apresentar ao seu criador primordial. No ano da atribuição do Nobel, frequentei um curso sobre Literatura Portuguesa Contemporânea na Universidade Católica de Braga e aí defendi ferozmente, perante certo Professor menos entusiasmado com o Memorial do Convento, a excelência da obra e do escritor. Na semana seguinte à discussão, entrei na sala e vi muitos sorrisos cúmplices à minha roda. O Professor cumprimentou-me como se o prémio fosse meu: “O senhor doutor deve estar muito satisfeito”, disse. Devolvi-lhe o sorriso: “Estamos todos, não é?”
O que mais admiro na obra romanesca de Saramago é a ideia de a narrativa ser, se globalmente considerada, uma representação e uma ordenação do mundo. Uma leitura ética do real. Uma visão da condição humana que articula a cínica lucidez do autor com a generosa ternura e poesia do enunciado.
A morte de Saramago dói-me como se fosse a morte de um amigo próximo ou de um familiar. É um pedaço do meu mundo que desaparece. Percebeis? Faz parte do nosso crescimento, enquanto não desaparecemos, que desapareça o que connosco era a vida.
Há muito que descobri, na minha frágil existência, a mortalidade. Tenho de viver com ela, enquanto não me liberto, morrendo, dela. Mas há a escrita. A saudade produtiva que é a voz do já passado ter futuro. A revisitação de, por exemplo, Todos os Nomes, uma das mais belas histórias que eu alguma vez pude ler.
Já não existe José Saramago? Vou lê-lo. José Saramago existe.
Por isso, em vez de dizer adeus e obrigado ao Amigo que morreu, digo-lhe olá. E digo-lhe, de qualquer modo, obrigado. Por, atentai nisto, ele não bem ter morrido.


Ribeira de Pena, 18 de Junho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

3 comentários:

Anónimo disse...

No dia do adeus a Saramago eu não chorei.
Mas a minha tristeza é profunda: é a tristeza de uma leitora já com saudade das suas palavras. Saramago não morreu, pois os grandes homens não morrem. Saramago deixou de escrever, partiu, e levou consigo as palavras. E é isto que dói profundamente. Resta-me ler os livros que ainda não li, reler os que já foram lidos e dizer obrigada, Saramago, por continuares a existir.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Certo, justo, bem.

Paulo Pinto disse...

É doloroso, sobretudo quando se admira alguém, saber que nada mais brotará daquele ser, que o génio criador encerrou as portas. POdemos lê-lo, relê-lo, podemos inspirar-nos nele, mas não podemos acrescentar à obra que teve o seu epílogo. Há outros escritores talentosos, outros houve e outros virão, mas este - como todos - era único. Resta-nos agradecer-lhe por ter existido e pelas muitas magníficas obras que escreveu. Era um escritor do século XX, nos seus posicionamentos, nas suas inquietações. Viveu, lutou, produziu, alcançou fama e reconhecimento, será justamente lembrado, admirado e estudado. A última página da sua vida escreveu-se agora. Descanse em paz.