Coetzee, para explicar o seu conceito de “clássico”, fala de um episódio – inventado ou não – que se terá passado na sua infância. Algures na África do Sul, por entre a vegetação e o cimento de uma zona residencial, música de Bach interrompeu a realidade. Era (digo eu) o mágico som da arte, intemporal e universal, espécie de súbito oiro cósmico, reconciliando o chão dos passos com o ilimite barroco dos céus.
Eu ouvi Bach durante uma viagem entre Cabeceiras de Basto e Ribeira de Pena. Não sei se a minha experiência se pareceu, em algum aspecto, com a do escritor nobelizado de
Desgraça. O que sei é que senti, por dentro, os olhos caminharem por entre as próprias lágrimas até 1970: a minha mãe, durante a lida da casa, canta Povo Que Lavas No Rio, muito melhor que a famosa Amália. Em 1974, canta Ó Papão Vai-te Embora, para adormecer o meu irmão Emanuel, no fim de uma tarde de Novembro. É tão nova para sempre a sua voz, e tão grande o regaço que há na melodia que ela é!
Com Bach, regresso à Coimbra de 1986: o meu pai pisca o olho vivo a uma sopeirita gorda, à saída do hotel Astória e diz-lhe que já vem. Vou ainda a Machico, no ano re-presente de 2005 e está o José Manuel gargalhando vivamente sobre um episódio passado na fábrica do cimento. É tudo tão imortal, senhor Johann Sebastian. Talvez Deus, a existir, seja afinal uma música sua.
Mesmo porque é Deus, para os humanos de todos os tempos, o clássico dos clássicos.
Vila Real, 23 de Junho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é a do retrato de Johann Sebastian Bach feito por Elias Gottlob Haussmann, em 1746.]
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