Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Para sempre

Dos 12 aos 18 anos, apaixonei-me para aí umas vinte vezes, nem sempre pela mesma pessoa. Não se tratou, em qualquer dos casos, de desvario de lana caprina ou de inócuo passatempo. Foi sempre coisa profunda e para sempre, de acordo com o testemunho mais fidedigno de todos, o meu. Aos treze anos, dava-me para fazer poemas e ouvir singles de Demis Roussos. Suspirava nas aulas, nos corredores, antes do sono e a correr para o autocarro. Via-a por cinco minutos ou por um segundo e pedia, ao deus dentro de mim, que ela tivesse reparado no meu olhar, no meu blusão de ganga, no meu cabelo, na jogada do golo contra o 7.º D, no Muito Bom que a professora me escrevera no teste. Um dia, o último antes das férias, dancei com ela e senti a textura misteriosa que há nos anjos: o meu coração pulsou três minutos contra o volume citrino do seu peito, as minhas mãos autorizaram-se o sacrilégio de andar por aquele cabelo loiro que, tão antes de tocar, sonhara, uma parte de mim uivava a fúria de lobo juvenil e virgem. Usava-se socas, na altura, e isso fazia-me tão alto como Paul Newman. Despedimo-nos com um beijinho na vizinhança dos lábios. Entretanto, fui ao Choupal tomar banho no Mondego, à praia de Mira, às festas na Pedrulha, ao cinema Sousa Bastos, ao futebol com o meu pai. Na praia, apaixonei-me duas vezes para sempre, nos quinze dias alugados junto ao Café S. José. Já em Coimbra, comi cerejas em casa da tia Lurdes, roubei laranjas na quinta de um homem rico, fumei cigarros proibidos entre as árvores do Casal Ferrão. O Demis Roussos cantava, às ordens de certa agulha perecível: Goodbye my love, goodbye, Goodbye and au revoir, as long as you remember me I’ll never be too far. O Demis Roussos era muito gordo e, dizia-se, não usava cuecas sob aquelas túnicas que vestia. Lembro-me de pensar que, durante a lírica interpretação, aquilo tudo deveria abanar muito. O Gianni Morandi cantava (e eu com ele): Non son degno di te. O meu avô fazia candeeiros a partir de qualquer objecto: uma garrafa, um calhambeque, um tronco oco, uma boneca. Eu li o Miguel Strogoff e quis escrever um romance chamado Pessoas Não São Países. Depois, descobri, no mesmo Verão, O Dumas pai, com os Três Mosqueteiros, e o Dumas filho com A Dama das Camélias. Enchi logo uns caderninhos com episódios de espionagem e esgrima, e outros com coisas sobre o ciúme e o destino que, se eu fosse o Camilo, não seriam ridículas. Quando descobria uma palavra nova, sobretudo na prosa trissemanária de Victor Santos d’A Bola, ficava mortinho por a utilizar em textos meus: subterfúgio, vernáculo, filigrana, coesão, acuidade, explanação, virtuosismo. Roubei, talvez uns dois ou três anos antes, num quiosque da rua da Sofia, As Pupilas do Senhor Reitor, enquanto a minha mãe comprava a Crónica Feminina. Que diria o bondoso Júlio Dinis desta vileza que mo deu a conhecer? Se eu lhe dissesse que, um dia, pegaria na memória da aldeia que aquele livro me trouxe e começaria a escrever uma tese muito minha sobre o encanto e utilidade essencial da literatura, ou que viria a perceber e a defender a ideia de que é preciso ler para gostar de ler? Quando veio o Outono, eu comecei a jogar no União de Coimbra, senti-me uma espécie de pai do meu irmão mais novo, conheci holandeses que ajudaram a acabar com o bairro de lata da Relvinha, comecei a beber café no Lusa Nova como as pessoas grandes. Apaixonei-me decerto por outras raparigas, para sempre. Eu bem lhes dizia, em prosa e em verso, que era para sempre. Algumas, temo-o bem, não acreditavam. Mas era verdade, mas é verdade. 

 Ribeira de Pena, 09 de Junho de 2010. 
Joaquim Jorge Carvalho 

Para recordar, já agora, a letra do “Goodbye, my love, goodbye”: Hear the wind sing a sad, old song it knows I'm leaving you today please dont cry or my heart will break when I go on my way Chorus: Goodbye my love goodbye goodbye and au revoir as long as you remember me I'll never be too far Goodbye my love goodbye I always will be true so hold me in your dreams till I come back to you See the stars in the sky above they'll shine wherever I may roam I'll pray every lonely night That soon they'll guide me home Chorus

4 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

Juro que eu isso tudo também, com o Demis, sim, juro.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

No surprise.

Hug.

QJ

Anónimo disse...

Gostei do seu "conto" e senti nostalgia dos dias que passei apaixonado naquele Liceu Nacional de Guimarães, hoje Escola Secundária Martins Sarmento. E foi nos anos de 1975/1976/1977.
Há tanto tempo!!!
Abraço
Luís Filipe

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Sr. Luís Filipe, obrigado por ter andado por aqui a ler. Volte quando puder/quiser. Abraço.

JJC