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sexta-feira, 25 de junho de 2010

Saramago e o aborrecimento presidencial


Talvez tenha sido o presidente Cavaco Silva, de todos os portugueses, o mais genuinamente aborrecido pela morte de José Saramago. Estragou-lhe as férias e, mais do que as férias, aquele remanso de consensualidade que Sua Excelência tanto aprecia. Pior do que aquilo, só o Nobel (e, sobre o prémio da academia sueca, ouvi eu um professor universitário, desconsolado com a notícia, garantir que “a culpa tinha sido do Mário Soares que andara pelo mundo a pedir um Nobel para a literatura lusófona”).
Atenção, senhores. Embora seja uma vergonha para o país que o chefe de estado desvalorize a importância de um vulto como Saramago, nós nem nos deveríamos surpreender.
Este presidente era primeiro-ministro no tempo de Sousa Lara, célebre censor da década de oitenta do século XX, entretanto outra vez famoso nos últimos anos por razões que, de momento, não me lembro.
Este presidente é o mesmo que, em visita a uma escola do ensino básico, se gabou de não saber quantos cantos havia n’ Os Lusíadas.
Este presidente é o mesmo que, julgando estar a produzir uma fina ironia, confessava o seu desamor a Saramago por gostar de vírgulas num enunciado, querendo com tal denunciar um eventual descuido do escritor nesse aspecto da pontuação. Ora, a verdade é que, se ele se tivesse dado ao trabalho de ler (ou de mandar ler por ele) os romances do infame comunista, saberia que o que mais abunda, no estilo saramaguiano de contar, é a vírgula (a qual funciona - nesta estratégia da produtiva promiscuidade entre oralidade e estrita – como vírgula propriamente dita, mas também como dois pontos, travessão, ponto de interrogação, ponto de exclamação, reticências).
Ainda por cima, Saramago era (é) um livre-pensador, fonte de inquietação e desafio permanente, o que incomoda quem tenha do saber a preclara noção de circunstância imutável, não susceptível de dúvidas e muito menos de engano.
Cavaco Silva não teve pachorra para vir homenagear o único prémio Nobel da nossa literatura. Homenagearam-no, por ele, outros – e, entre os outros, muitos estrangeiros, como formosamente aconteceu com ministros espanhóis (com relevo para Zapatero).
Bondosamente, Marcelo Rebelo de Sousa lá disse, sem se rir, que Cavaco Silva não estava nas homenagens fúnebres fisicamente, mas que estava em espírito.
Nos comentários da blogosfera, um atrasado mental glorificava as férias açorianas do presidente por este assim afirmar a sua “personalidade e coerência” (cito). Mas nós já vimos Cavaco Silva, por exemplo, engolir sapos na Madeira, ou dizer mal da lei do casamento gay e, depois, não a vetar.
Falta-lhe grandeza, disse um cronista num jornal de referência (como já teledissera, recordo, Clara Ferreira Alves no “Eixo do Mal” da Sic Notícias). Ora, um sábio francês, Jean de La Bruyère, explicou um dia que – ao contrário do que pensam muitos espíritos – a grandeza ou pequenez de um indivíduo vê-se mais se ele estiver num lugar elevado. Do intelecto de Bush talvez nem ouvíssemos falar se ele se tivesse ficado apenas por governador do Texas, o que privaria o mundo de gargalhadas e também de algumas guerras inúteis.
A lição serve para a nossa actualidade política. Os grandes são maiores se vistos em lugar de proeminência. Os pequenos ficam desgraçadamente mais pequenos.

Vila Real, 24 de Junho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meireles baseado no romance homónimo de Saramago.]

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