De Italo Calvino conhecia, até ontem, alguns livros: Palomar, Seis Propostas Para o Próximo Milénio, As Cidades Invisíveis, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, O Barão Trepador. O último destes títulos foi, sem dúvida, o que mais me agradou (aliás, impressionou). Gosto de boas histórias consubstanciadas em boa escrita.
Várias vezes tropeçara já, em artigos ou entrevistas, no título O Visconde Cortado ao Meio. Pude, numa noite, devorá-lo, enfim, porque se me ofereceu a oportunidade de o requisitar na biblioteca da minha escola (edição da Teorema, Lisboa, 2009).
O milagre da leitura beijou-me novamente! Como não quero roubar a amigos o prazer (provável) da leitura, apenas me permito confidenciar-vos que se trata de uma espécie de alegoria dos sentimentos – em concreto, um discurso sobre a dramática contradição que, com raras excepções, habita o ser humano: um ser de paz & guerra; tolerância & radicalismo; criação & destruição; bondade & maldade.
Em certa medida, há na obra um permanente diálogo – no seio do próprio indivíduo – entre o Deus e o Diabo de que somos feitos. O signo que preside à metáfora vai buscar o significante a um episódio (só possível no universo da narrativa): alguém – “um visconde” - perde metade do corpo (no sentido longitudinal), na sequência de um episódio de guerra. Uma metade sobrevive e, hélas, essa metade é a sua metade má. Páginas (capítulos) adiante, descobre-se que a outra metade (a metade boa) também sobrevivera. O combate entre ambas as metades torna-se inevitável. Ofereço-vos, como introdução ao prazer de uma provável leitura, um passo relativo ao duelo entre os dois lados da condição humana:
«Era uma madrugada toda em tons de verde; no prado, os dois subtis adversários, vestidos de negro, mantinham-se firmes em atitude de expectativa. O leproso fez soar a sua trompa: era o sinal combinado. O céu vibrou como uma membrana estendida. Nas cavernas as gralhas enfiaram as unhas na terra, sem tirarem a cabeça debaixo da asa, as garças arrancaram as penas do próprio corpo com grande sofrimento, a boca da minhoca mordeu o seu próprio rabo, a víbora ente4rrou em si mesma os seus dentes venenosos, as vespas perderam os ferrões, quebrando-os nas pedras, e todas as coisas se voltavam contra si próprias, a geada das poças de água gelava, os líquenes tornavam-se pedras e as pedras líquenes, as folhas secas tornavam-se terra, e a seiva, tornada espessa e dura, matava a vida da própria árvore que se alimentava dela. Assim o homem se lançava também contra si próprio, com ambas as mãos armadas de uma grande espada.» (pp. 152-153.)
Revejo o nosso Fernando Pessoa (ou Vergílio Ferreira) nesta maravilha enunciatória: “O homem contra si próprio.”
Arco de Baúlhe, 20 de Outubro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
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