sábado, 24 de julho de 2010
Pentear macacos
A proposta do PSD que prevê o fim do cariz tendencialmente gratuito da saúde trouxe-me à memória o senhor Brito Brás.
Recorde-se: de acordo com Passos Coelho, a saúde deve ser paga por quem pode e só gratuita para quem não pode pagar. Aparentemente, está certo, é justo, compreende-se.
Sucede porém que foi essa lógica que levou à destruição da Escola Pública e da Saúde Pública em muitos países.
Previsão fácil: sobrevirá a Escola Privada e a Saúde Privada de qualidade, paga por quem puder; ficará uma espécie de Escola Pública e de Saúde Pública (baratucha e residual) para quem não puder.
Quem esfrega as mãos de contentamento são os empresários que vêem nesta janela constitucional uma oportunidade de negócio em grande. E ninguém está a ver os donos do dinheiro a preterir o lucro em favor da generosidade humanista. Está bem, está.
É preciso, entretanto, lembrar que o serviço nacional de saúde já é pago com os nossos impostos. É gratuito apenas na medida em que o pagamos num macro-bolo que deveria também chegar para educação, justiça, defesa, segurança interna, etc. E se o dinheiro fosse bem gerido, certamente chegaria...
Quem tem isto a ver com o senhor Brito Brás?
Brito Brás era um presidente de um clube da terceira divisão nacional. Queria lutar pelo título, mas o orçamento dificilmente permitia contratar jogadores de qualidade. A opção de jogar apenas com os jogadores possíveis, moderando as ambições e alguns gastos sumptuários (que apenas alimentavam o ego do presidente e irritavam os habitantes da aldeia vizinha), desagradava a Brito Brás.
Que fez, portanto? Inicialmente, foi vivendo da generosidade do município e de alguma publicidade. Depois, começou também a recorrer ao crédito. Antes de o clube acabar, aumentou por três vezes as quotas, provocando mal disfarçada azia aos associados.
No último ano, quis aumentar o número de sócios. Entre outros brindes, a campanha falava da vantagem que era, para um sócio, ter antecipadamente bilhetes garantidos para toda a época. Não grátis, note-se; apenas pagos a priori com leve desconto.
Mas a última proposta de Brito Brás, um mês antes de o clube acabar, foi que, para além das quotas, os associados pagassem também os bilhetes dos jogos disputados na aldeia.
Um camionista perguntou-lhe, nessa assembleia geral:
- Então, qual é a vantagem de pagarmos quotas?
E o senhor Brito Brás respondeu despudoradamente:
- Isto é para salvar o clube.
O camionista levantou-se e, antes de sair, mandou-o pentear macacos.
Ora bem, face a Passos Coelho (que é uma espécie de Sócrates, mas sem vaselina), eu sou o camionista do clube da aldeia:
- Então, qual é a vantagem de pagar impostos?
Ele que venha dizer que isto é para salvar o país...
Coimbra, 23 de Julho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra foi colhida - com a devida vénia - em http://fotosgratis.allfreephotos.com.]
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2 comentários:
O teu texto é uma brilhante desmontagem da argumentação neoliberal que, aparentemente tão sensata, tão racional, pode levar ao esvaziamento do pacto social implícito que existe entre o Estado e os cidadãos contribuintes. A saúde e a educação são pilares essenciais desse pacto.
Infelizmente, a separação de facto entre saúde e educação «de primeira» (para quem pode) e «de segunda» já está a acontecer na prática, e de maneira cada vez mais ostensiva. Concordo com o que Louçã propôs num debate com Sócrates e que este aproveitou para, segundo os media, «vencer» o debate: despesas de saúde e educação privadas, havendo alternativa de serviço público, não deveriam ser dedutíveis no IRS. Quanto dinheiro em devoluções a quem menos precisa o Estado não poderia aí poupar e aplicar na melhoria da rede pública! Resolver o problema do défice não é fácil, mas não pode passar por pedir sacrifícios cada vez maiores em troca de cada vez menos serviços. Ao contrário do clube do Sr. Brito Brás, o Estado português não pode fechar as portas...
Amigo,
Obrigado pela tua visita e pelo (habitual) brilho das tuas palavras-ideias.
Abraço!
JJC
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