Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Brasa


Inclemente, o sol assola a cidade.
Homens e mulheres desistem, em desigual cadência, do decoro e vão-se despindo.
De Celas à rua da Sofia só não é Copacabana porque falta o mar. Muito afogueadas, as senhoras destilam – do cabelo aos pés – as torradas e o chá do inverno engordante. Uma à minha frente, na esplanada, sopra para dentro da blusa (refrigerando os globos) e abana a saia (arejando o universo).
É à distância que o sofrimento feminino é sensual. De perto, é tudo tão óbvio de penoso que, em vez de mulheres belas, percebe-se apenas a cruel mortalidade delas.
Além, um senhor muito gordo, com pasta preta, cumprimenta de passagem o operário à porta da oficina de automóveis; o gordo deve ter dito uma piada sobre o calor porque o homem de fato-macaco ri-se e responde-lhe com um palavrão, distraindo-se ambos logo a seguir um do outro, porque um corpo juvenil de calçãozinho mínimo passa. Demora tudo não mais que três segundos, e segue-se a humilhação habitual que é o cabrão do desejo rir-se deles por dentro.
Derivação machista: se houvesse mar e não tivéssemos esta mundial crise pesando sobre o presente e sobre a esperança, seria este o lugar certo para um homem estar. O lugar certo para fingir que o tempo não passa. O lugar certo para fazer de conta que o corpo e a mente são ainda sensíveis ao cheiro da caça, e capazes da fome, e à altura da predação.
Um velhinho interrompe o trânsito, ao Arnado, atravessando a rua com vagares de bengala doente. O terrível calor deve acelerar-lhe a morte. Há depois um claxon impaciente contra a velhice. Eu estou atrás, olhando de viés esta parte de Coimbra. Vou ouvindo Simon & Garfunkel no aconchego do ar condicionado.
Sigo para a Casa da Cultura, onde trabalharei na revisão bibliográfica da tese. Na galeria Pinho Dinis, há uma exposição sobre Alberto Sampaio (homem importante das filosofias e – descubro agora – também da vitivinicultura). Já sabia que fora contemporâneo e amigo de Antero de Quental. A exposição compreende cartas trocadas entre os dois (sobre vinhos, amizade e tempo). Gosto sempre destas literaturas epistolares.
Coincidência interessante: na parede fronteira à minha mesa de trabalho, diviso vários poemas em caracteres garrafais, e o mais próximo é de Antero. Sirvo-me da última quadra para terminar este escrito, começado mentalmente a 40 graus e terminado no remanso burguês de uma sala fresca:

Mas dize tu, ó Mondego
Pois todos levam seu fado
Tu que foges e eu que fico
Qual de nós vai mais pesado?

Coimbra, 06 de Julho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em http://www.skyscrapercity.com.]

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